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Adeus longo para o Juvêncio

Gostaria, também eu, e como tantos outros companheiros da blogosfera, de registrar minha homenagem ao Juvêncio, cujo falecimento, há trinta dias, nos comoveu profundamente. Quero falar sobre a pessoa do Juca, mas também sobre a sua contribuição política através do Quinta Emenda. Certamente que a pessoa está presente nessa contribuição e que não seria possível o Quinta Emenda, tal como foi, sem o Juca. Mas faço a distinção para poder ressaltar, a partir do meu ponto de observação e tendo em mente meu próprio diálogo com ele, o quanto o Juvêncio deixou, para mim e para todos nós uma contribuição valiosa.

A pessoa, em primeiro lugar, que eu conheci há vinte e dois anos, exatamente. O Juca era diretor de planejamento da Fundação Cultural do Pará, o Centur, quando eu, ainda estudante de comunicação, fui trabalhar na assessoria de imprensa daquele órgão. O Centur tinha sido inaugurado há pouco tempo, e era um centro cultural ativo, com uma programação instigante e, por trás de tudo, o trabalho do professor Paes Loureiro, que, nesse tempo, motivava incrivelmente a todos que se interessavam pela cultura. Conversando aqui e ali com o Juca, logo um tema se tornou constante nesse diálogo, ainda que muito implícito, à começo: as questões superpostas da formação da opinião pública, da ação social e dos fóruns de participação e militância. Naquele tempo eu acreditava firmemente que a cultura, e especificamente as políticas culturais, eram o instrumento mais valioso para esses processos, e ele discordava, dizia que a comunicação era mais importante. Eram também os primeiros anos de existência da TV Cultura, e por lá se fazia uma série incrível de documentários – ainda que todos os efeitos especiais, das ilhas de edição fossem sistematicamente, levados ao ar...

Certa vez, esse tema de conversação gerou um episódio que ficaria registrado, para mim, e que até hoje ecoa em tudo o que me interessa, um episódio-fundador que teve o efeito de demonstrar, para mim mesmo, o problema que se punha nas conversas com o Juca e ao qual até hoje me dedico, aqui e ali, de uma forma ou de outra, na UFPA ou no governo.

O episódio foi o seguinte. Um querido amigo comum, o João Lúcio, conhecido por não levar a cabeça acima dos ombros, convidou um monte de gente para debater políticas culturais, no teatro Waldemar Henrique, numa muito calorenta tarde belemense. Talvez porque conhecessem o JL, ninguém foi. Nem mesmo o JL, que esqueceu do seu próprio convite e até hoje nega o episódio. Duas pessoas foram, sem combinar sequer a fé no João Lúcio: Juvêncio e eu. Lá chegando, constamos que nem mesmo o porteiro sabia da reunião. Aliás, não só não sabia como também estava de muito má vontade para nos deixar entrar. Com a rudeza típica das pequenas autoridades indagou de onde nós éramos. O Juca respondeu, com tranqüilidade: “Da sociedade civil”. Bom, o que se sucedeu foi ridículo, apesar de muito próprio da sabedoria pequena das pequenas autoridades: o sujeito nos fez entrar, puxou-nos cadeira, ligou-nos o ar-condicionado, serviu-nos cafezinho e ficou nos olhando, eternecido.

Sabe-se lá o que o infeliz julgava ser a “sociedade civil”.

Esse episódio me tirou noites de sono. Anos seguidos, e ainda hoje as retira, porque não é simples colocar o problema da sociedade civil a uma sociedade que não se sabe civil, que certas vezes é incivil e para a qual, de maneira pungente, própria noção de sociedade – ou de seus sucedâneos, como participação social, grupo, militância, senso comum, representação social etc é ausente. Como o passar dos tempos essa situação-problema me permitiu ilustrar, em vários trabalhos no mestrado e no doutorado, a própria inconsistência da noção de sociedade, haja vista que ela é um vetor que só ganha sentido do ponto de vista do observador, mas não necessariamente do participante e me levou a vários outros problemas que até hoje me incomodam, dentre os quais a função social do intelectual, da autocrítica, a necessidade de obter consistência crítica antes começar a publicar, o agendamento da política pela mídia e a formatação das políticas públicas, sobretudo as políticas culturais e de comunicação, como agentes de integração e de emancipação social.

Logo que me formei trabalhei com o Juca, e com vários outros personagens fabulosos, como o João Vital, a Marise Morbach, Mauro Lima, Sérgio Palmquist, Afonso Klautau, Miléu, Ronaldo Rosa, Mário Souza, Octávio Cardoso, Vanda Cabral, Tim Penner, Mário Filé e Marlice Bermeguy, dentre outros, na produção do programa político da candidatura (incrível) PSDB-PT ao governo do estado. Campanha de 1990. Isso seria impossível hoje, mas naquele tempo, em que o PSDB ainda não havia chegado ao poder, era, e foi possível reunir essa equipe que, para os marketeiros de hoje seria uma espécie de time dos sonhos. Bom, um time que perdeu a eleição, não obstante, mas que fez um programinha bonito pra cacete.

Pouco tempo depois, já integrando a equipe do professor Alex Fiúza de Melo, então pró-reitor de extensão da UFPA, o Juca concebeu o programa Academia Amazônia, uma revista digital de divulgação científica com meia-hora semanal de duração que, mais tarde, se tornaria o Minuto da Universidade. Formou uma primeira equipe e me convidou a fazer parte dela. Também era uma equipe deliciosa: a Marise, a Risoleta Miranda, o Mauro Lima, o Cassim Jordy e o Paulo Sílber. Infelizmente esse projeto foi sendo adiado e cada um foi tomando seu rumo antes do programa ser viabilizado, mas trabalhamos intensamente na criação editorial da revista: quadros, skets, pautas e vinhetas. Para mim, no entanto, o melhor de tudo era a possibilidade que tive de conversar, algumas vezes, com o Juca, o Alex e também com o grande Emanuel Mattos, que atuava também ali. O Alex voltara recentemente do seu mestrado e , cientista político, tinha uma percepção aguda dos velhos problemas discutidos nos tempos do Centur. Por outro lado, o Emanuel era, como é, um desses papos sublimes e um dos maiores conhecedores das temáticas culturais paraenses.

A propósito, eram os anos da integração regional promovida pela UFPA, a chamada “interiorização”, na qual nossa universidade teve um papel ativo estruturante do desenvolvimento regional, uma aventura apaixonante que, algumas vezes, na ante sala do Alex, me foi descrita por uma de suas assessoras mais entusiasmadas e generosas, a Naná, também levada prematuramente, como o Juca, por um câncer.

Eu parti para o mestrado e morei em Brasília por dois anos. Esporadicamente tinha contato com o Juca. Numa de minhas vindas a Belém ele me convidou para animar um ciclo de debates sobre comunicação e política. Foram cinco noites interessantíssimas (para mim, ao menos, mas usando uma expressão que era bem dele). Na primeira discutimos a teoria do “fim da história”, do Francis Fukuyama e como ela servia aos interesses neoliberais, em curso ativo. Na segunda, a obra de Karsenti como elemento para desconstruirmos Fukuyama. Na terceira, a teoria do espaço público em Habermas e em outros autores. Na quarta, o tema das contradições do espaço público midiatizado e, na quinta, enfim, a colocação do mesmo problema pela teorias da pós-modernidade.

Esses temas me ocupavam no primeiro semestre do meu mestrado. Na verdade, eram apenas a recolocação, mais embasada, de tudo aquilo que eu conversava com o Juvêncio no Centur. E olha que nem era tanta conversa assim, mas sim um diálogo eventualizado, de corredor, de elevador, de garagem e de fim de expediente, mas era um diálogo constante e, para mim, valioso ao extremo, porque o Juca sabia ser um mestre das coisas incosúteis. Um pedagogo, eu diria, naquele sentido socrático, anti-metafísico, porque ele sempre me indagava. Era um mestre das coisas incosúteis, e por isso tenho muito a agradecer-lhe e muito a reverenciar à sua amizade, longínqua mas fiel, eventual mas rigorosa, crítica mas generosa.

Consultei-lhe quando fui convidado, pelo Paulo Chaves, a ocupar o cargo de diretor cultural da Secult e ele, sem desaconselhar diretamente, disse um "vai ser bom, vai ser bom" que equivalia a uma lista de motivos para eu fugir do posto. Ocorre que, sendo para mim a oportunidade de por em prática tudo o que pensava, escrevia e discutia, já há tanto tempo, sobre política cultural – e, especificamente, sobre a ativação e o fortalecimento da sociedade civil através da política cultural – não pude recusar o convite. E, bom, quando saí do cargo, um ano mais tarde, física e moralmente desgastado – para dizer melhor a verdade, doente e aniquilado – o Juca me deixou um bilhete com um “Eu não disse?”. Eu pedi para sair dali convicto de que minha proposta sobre “fortalecimento da sociedade civil” via agentes culturais organizados e mercado cultural era inviável num governo tucano e só servia para ornar a fala vaidosa da gestão. Mas ele já sabia disso, creio. Não que tivesse cores partidárias. Aliás, o Juca conseguia estar acessível a todos, mesmo sendo crítico e, várias vezes turrão, com todos.

Ah, lembro que uma vez provei sua carne assada, na antiga casa da Doca, naquele trecho que não parece a Doca, entre a São Jerônimo e a João Balbi. Também encontrei com ele, por acaso, numa imensa fila de espera para retornar a Belém, no aeroporto de Brasília. Ele e Serginho Palmquist estavam retornando de Marabá por essa rota absurda de desce e volta e tivemos uma conversa em pé, na fila, mas tomando uma boa cerveja.

Depois, veio um longo período sem vê-lo, meus quatro anos em Paris, e, na volta, a interlocução eventual, no mais comum em eventos públicos. Quando fiz uma consultoria para uma universidade privada lá ele dirigia o curso de publicidade, mas logo saiu, para mais uma dessas grandes rotas que eram suas campanhas políticas.

Quando veio o convite para assumir a Secom, coloquei no papel as bases daquilo que eu chamava de política de comunicação comprometida com o fortalecimento do espaço público e passei por email ao Juvêncio. Ele foi uma das poucas pessoas a quem consultei a respeito daquele monte de idéias que, na prática, surgiam de vinte anos de diálogo inconcluso - com ele de forma muito especial - ainda que somente agora isso tudo me ocorra, bem como esta vontade superior de lhe fazer justiça e de lhe prestar homenagem.

O retorno, como sempre, foi profícuo. E ele prometeu um boeuf borguignon para acompanhar a conversa. O meu tempo é que se tornou escasso. Mas foram incontáveis as vezes em que o Juca contribuiu com meu trabalho e com o do João Vital, secretário adjunto da Secom e também muito seu amigo, na Secretaria de Comunicação, sem jamais perder seu senso crítico, sem jamais usar de nossa amizade para obter acesso privilegiado à informação, sem jamais se deixar usar, por nós, para transmitir informações estratégicas para o governo.

Uma colaboração que, muitas vezes, se deu por meio de mensagens cifradas no Quinta Emenda, mensagens que o João Vital e eu decodificávamos com atenção rigorosa e bom humor. Histórias que, certamente um dia, o João ou eu vamos contar e que hão de ajudar a mostrar o papel do Juca e do Quinta Emenda na formação disso que está à fundo e no fundo de tudo o quanto sempre conversamos: a possibilidade de termos, nesta Nova Délhi que incansavelmente criticamos mas que, imodestamente, amamos, uma esfera pública da sociedade civil crítica, participante e combativa.

A propósito, como eu disse no começo, também iria falar sobre o Quinta Emenda. Bem, percorrido este longo trajeto, este longo adeus, percebo que já falei o quanto devia sobre o Quinta Emenda, porque o blog do Juca foi a materialização, ainda que fugaz, dessa esfera pública crítica e participativa, através dele e de seus comentaristas. E isso, que não é pouco, marca a nossa história coletiva. E também a história pessoal de muitos. E é nesse sentido que, quando soube da morte do Juca, eu disse, no Hupomnemata, que as palavras voam, mas os blogs permanecem: Verba volant, bloga manent, se me permitem o latinismo de epitáfio.

Desculpem-me se minhas reminiscências a respeito do Juvêncio se embaralham com meu próprio percurso, mas gostaria de dizer que me comove muito, imensamente, percebê-lo. E, em função disso, deixar aqui um longo mas sincero agradecimento pela generosidade e, acho que posso dizer, pela parceria. Segue em paz, grande amigo.

Comentários

Luciane disse…
Fábio, obrigada por dividir conosco o seu convívio com o Juvêncio e por nos dar esta oportunidade de sentir ele mais pertinho... Essas histórias me fazem admirar ainda mais o Ju, que conheci na blogosfera, no seu Quinta Emenda, a iniciativa que resume de forma louvável o que representou a vida deste homem contestador, irriquieto, inteligente e visionário. Juvêncio foi um grande mestre e suas lições ficarão.
Abs!
Lu.
Professor, seu texto é sempre tão fácil de ler, e este sobre o Juvêncio é também tão bonito.
abraços
Anônimo disse…
Fábio,
Camarada, neste texto vc elogia do Afonso Klautau, uma cara que meteu o pau em você, sem nenhuma piedade, quando vc assumiu a Secom. Além disso, um tucano calhorda, desses que mentem, lambem a bota do chefe e sacodem a bunda (se não a oferecem também...) sem nenhum pudor. Tem algo errado aí, não?
hupomnemata disse…
Caro Marcelo,
Obrigado, sempre muito bom ter vc aqui. Abraço grande.
hupomnemata disse…
Lu,
Juvêncio resta a ser descoberto. Ficou encantado. E olha que tenho um amigo que tem ótimas histórias dele. Mesaventuras no buffet da d. Cecéu, sua mãe, que ficava num enorme palacete ali na Rui Barbosa... Um dia alguém precisa reunir memórias sobre essa grande figura.
Abraço.
hupomnemata disse…
Anônimo aí de cima,
Independente do que tenha falado sobre mim ou do que pense sobre mim, Afonso Klautau é, de fato, um grande profissional. Sempre tive uma relação muito boa com ele, mas quando assumi a Secom, realmente, o AK desembestou a me agredir, inclusive inventando coisas completamente absurdas e muitas mentiras, como o episódio sobre a sua aposentadoria, quando disse que eu o forcei a se aposentar da UFPA, o que é ridículo. Esse comportamento dele se deveu a questões partidárias, suponho. Ou a uma prática, muito belemense, de espicaçar reputações. Encaremos isso como um fato antropológico, ou psicológico. O profissional AK merece meu respeito.
Anônimo disse…
Ah, eu não acredito que o Afonso Klauta se aposentou e continua recebendo aposentadoria a custa dos alunos que por anos a fio ficaram à espera de suas aulas nas salas quentes da UFPa.
Quanto a vc professor não me surpreenderei ler seus elogios ao AK se ele morrer antes, é bem do seu feitio, apolítico, digamos assim.

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