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Um texto de Kenneth David Jackson sobre Benedito Nunes

Reproduzo o artigo de Kenneth David Jackson sobre Benedito Nunes, originalmente publicado no blog do professor  Flávio Nassar. O autor é professor de Literatura Brasileira em Yale-USA. Foi amigo de BN e bem o conheceu. Nessa condição, foi convidado a participar do Colóquio Luso-Brasileiro de História da Arte, realizado em Belém há duas semanas:
Comemoramos hoje o nosso amigo, Benedito Nunes, um homem generoso e fino, dedicado ao ensino e ao saber, à filosofia, às artes e à literatura, leitor e pesquisador incansável, escritor e professor entre os mais eminentes do nosso tempo. Estudou na Sorbonne, foi sempre chamado pelas grandes universidades, mas escolheu ficar em Belém, viver e trabalhar aqui, entre livros, colegas, alunos e familiares. Dedicou-se, nos seus muitos livros e ensaios, ao nexo entre a poesia e a filosofia. 
Não conheço Belém sem Benedito Nunes. Belém sem Benê é como Paris sem a Torre Eiffel, Londres sem Big Ben ou Nova York sem o Empire State. Sumiu o que na cidade era mais essencial. E Benedito era de Belém. Era o Paris na América (Haroldo de Campos dizia que Benedito era de Belém de Paris). Uma das últimas publicações foi o livro que fez em parceiro com o escritor Milton Hatoum, A Crônica de duas cidades: Belém e Manaus (2006).
Conheci Benê em Belém, na casa-bibliotecas-auditório-galeria-orquidário da Travessa da Estrela, quando a rua ainda não era pavimentada. Ainda cheguei tarde para conhecer o Belém de antes, mas logo Benedito me levou para conhecer a casa das tias, antiga residência das duas tias simpáticas e acolhedoras que o criaram, onde pude sentir um pouco o ritmo e os prazeres que a cidade oferecia antigamente.
Na sua biblioteca, Benedito mostrou-me os volumes da expedição oitocentista, a Viagem Filosófica pelas Capitanias de Grão Pará, de Alexandre Rodrigues Ferreira, título em que Benê achou graça. Juntava os dois mundos que mais lhe interessavam: a ciência, o naturalismo científico, a curiosidade e a investigação, as viagens pelo mundo desconhecido e a filosofia, o mundo do saber em que ele sabia tão bem viver. Acho que esse título, viagem filosófica, serve muito bem para pensarmos e comemorarmos o Benedito, viajante que levou a sua estrela ao mundo e de volta a Belém. Era um viajante filosófico e viajante na filosofia.
Estivemos juntos há trinta anos em Austin, na Universidade do Texas, onde passou meio-ano como professor visitante. Os alunos que estudaram a literatura brasileira com ele nunca se esqueceram desse contato, da inteligência e simpatia dos seus seminários. E o professor também gostava muito da informalidade texana, de poder dar aula de tênis e sem gravata. Graças a Austin, começamos a nossa troca de mercadorias: eu trazia pequenas tortas de pecã a Belém – uma noz típica do sul de que se faz bolos e tortas -- e ele me esperava com bombons de cupuaçu. Gritava do balcão de Val de Cans, “Trouxeste pecã?” Estivemos juntos em Paris, onde compartimos passeios e aventuras, anos depois num congresso em Yale, e em tantas outras cidades. A primeira palavra da minha filha Sophia era “Gabi”, nome do cachorrinho da casa. Mais recentemente as companheiras de leituras foram as gatas.
Benê se interessava muito na linguagem e nas pessoas. Numa viagem que fizemos de Santarém a Óbidos, de barco, ele anotava num pequeno caderno as frases e palavras típicas do piloto, com a mesma atenção que dedicaria, como ensaísta literário, ao ‘drama da linguagem’ em Clarice Lispector. Pesquisador, pensador, leitor. Dedicou-se não apenas a temas e problemas filosóficos, mas à literatura, com ensaios que contam entre os melhores do gênero. Entendeu a relação entre a palavra e a vida. Sempre apoiava o valor e a necessidade da expressão poética, não apenas em grandes figuras, como o Drummond, mas também nos livros que chegavam de muitos poetas, do Brasil inteiro, todos lidos com atenção, e na poesia de colegas e companheiros de geração. Quando Clarice ligou para perguntar, angustiada, “Benê, será que a minha obra vale alguma coisa?”, o nosso filósofo deu o apoio essencial, existencial e humano que lhe era característico.
Benê dedicou um ensaio à obra poética de Mário Faustino -- cujo retrato ainda ocupa lugar de destaque em casa -- afirmando a unidade de uma obra dispersa: “a unidade da obra poética inquieta e vária de MF,feita de tantos contrastes, mais nos apercebemos o quanto ela envolve a vida do poeta e o quanto é difícil separa-la da atividade critica que a prolongou no plano do pensamento conceptual” (20). Ainda explica os traços pertinentes de modernidade poética de uma maneira clara e direta: “O que se chama de poesia moderna provém, em larga medida, desse papel ativo, que realça, neutralizando a função prático-comunicativa da linguagem, o estado de coesão da palavra com o objeto, da significação com a coisa, próprio do mito. Daí derivou um novo culto da palavra, bem diferente, por certo, do ceremonial... da eloqüência, e que se aproxima dos rituais mágicos verbais de encantamento.” (24) Através de sua obra critica, divulgou e valorizou a obra de poetas de Belém, como Max Martins e Age de Carvalho. Prefaciou livros de poesia de colegas. No prefácio ao livro de versos, “E todas as orquestras acenderam a lua”, de Lilia Silvestre Chaves, Benê nos dá uma lição de voz poética: “Todo poeta é uma caixa de ressonância... Poeta é um ser de companhia: voz retomando outras vozes, encobrindo-as, contestando-as, transformando-as e sendo por elas transformada.”
Com a perfeita companheira, Maria Sylvia, apoiaram e estimularam tanto a música, do Teatro da Paz, como as artes plásticas, em artistas como Dina de Oliveira e Emmanuel Nassar, e o teatro. Imaginem a minha sorte, de estar em Belém para os saraus artístico-musicais semanais da Travessa da Estrela: um bom filme, uma ópera, e muito convívio que acabava nas altas horas com sorvetes tropicais.
Eu e a minha família tivemos o privilégio de uma longa amizade com esse homem de filosofia e letras, um dos grandes escritores e intelectuais do Brasil. Queríamos que continuasse para sempre. Benedito continuará sempre presente na nossa memória como guia, exemplo máximo de uma vida dedicada ao saber, às letras e artes, e pela sua bondade e generosidade, intelectual e pessoal. Ficará sempre entre os seus livros e amigos, e nesta Universidade, transformado em palavra, através de sua obra. Prestamos a nossa homenagem a esse amigo sem par, homem universal de idéias e de letras, scholar exemplar de Belém.

Kenneth David Jackson

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