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III. Refletindo sobre a noção de cultura, em geral, e sobre o lugar de fala cultura paraense, em particular.
Provavelmente não há conceito mais difícil de definir do que cultura. A definição do antropólogo de origem mexicana Renato Rosaldo é, de longe, minha preferida: “cultura é a transformação do espírito em coisa”. Porém, apesar de ser minha definição preferida, preciso reconhecer que ela não alcança a uma série de problemas com os quais eu mesmo tenho me deparado em minha atividade de pesquisa. Trata-se, sobretudo, de uma conceituação poética – e é certamente por isso que eu gosto tanto dela. Porém, a verdade é que a cultura é, também, a coisa, a só-coisa, sem espírito. A antropologia dos mundos contemporâneos, de Amselle (1990) e Augé (1984) provam-no, de comum acordo com a sociologia compreensiva de Tacussel (1984), Watier (2002) e Mafesolli (1997), e, ainda, da parte pós-marxista dos estudos culturais pós-modernos.
Vou recorrer à etnografia para explicar melhor essa situação, a meu ver fundamental para superarmos o idealismo presente na maneira como o senso comum concebe cultura e, sobretudo, na maneira com a idéia de cultura é usada pelas campanhas do Sim e do Não.
O antropólogo Maurice Godelier nos conta, por exemplo, que a sociedade baruya, que estudou entre 1966 e 1973, nasceu de dois atos de violência, um sofrido e outro provocado, por volta do século XVII (Godelier, 2009:14). Naquele tempo, os baruya eram, apenas, uma tribo do povo yoyuê. Ocorre que as demais tribos de seu povo decidiram-se, motivadas por algum fator econômico e cultural que desconhecemos, exterminar seus congêneres. No massacre, quase toda a aldeia pereceu: homens mulheres e crianças. Apenas escaparam uns poucos caçadores, que haviam partido para uma missão de aprovisionamento.
Esse caçadores, ao retornarem e verem sua gente morta, abandonaram seu território e partiram numa longa viagem que finalizou quando foram aceitos por uma tribo, os ndêliê, pertencente a outra etnia ou andjê, que lhes cederam um pequeno território para que pudessem habitar e caçar. Passaram-se quatro gerações e a aliança entre as duas comunidades estava consolidada com diversificada troca de mulheres e por meio da assimilação da língua dos hospedeiros.
Nesse momento, os dois grupos fizeram uma aliança e decidiram perpetrar um novo massacre, desta vez contra as tribos irmãs dos hospedeiros, outros grupos andjê, no que tiveram êxito. Com isso, os baruya se apossaram de novas terras e, gerações passadas, usando a lingua andjê, intensificaram seu processo de autoreferenciação e de produção de significados de identidade. Criaram seus próprios ritos de iniciação, elaboraram seu próprio passado mítico e, com o passar do tempo, esse processo solidificou os laços humanos existentes e a sensação de interdependências entre os dois grupos aliados (Godelier 2009: 28). Continua
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