A vivência do Círio, para os paraenses, não é uma
experiência contínua. Ela tem rupturas, tanto em função das mudanças que
ocorrem no próprio Círio como em função das mudanças que vão ocorrendo na vida
das pessoas e que implicam em experimentações diferenciadas do Círio. Quando me
recordo dos meus primeiros Círios tenho em mente não a procissão, mas o
arraial, ainda no Largo de Nazaré. É que meus avós paternos moravam bem em
frente ao largo, no edifício Rainha Esther, um ponto de observação privilegiado
para toda a festa.
Tenho recordações muito precisas dos desenhos de animais,
florestas e caçadores que figuravam nos murais do carrossel. Acompanhava
atentamente a montagem do largo e ficava siderado ante a expectativa de
frequentá-lo. Mais que isso: quando não o frequentava – e, é claro, não o fazia
sempre, mas no máximo uma vez por semana – pegava escondido um binóculo, o
binóculo de madrepérola que minha avó possuía à pretexto de “usá-lo no teatro”
e que não era lá grandes coisas, e ficava acompanhando, com uma atenção
extremada, o divertimento das pessoas no parque. O apartamento ficava no oitavo
andar e tinha duas ou três imensas janelas que se abriam para lá. Com o
binóculo eu via muito do que acontecia. Acompanhava com particular interesse a
sempre imensa fila para o mais assustador dos brinquedos, o Sputinik, um
foguete mal ajambrado no qual as criaturas se punham para passar por giros de
360 graus, em altíssima velocidade. Bom, para mim era em altíssima velocidade.
Com o binóculo eu não conseguia focar no Sputinik em movimento, mas podia
perceber os rostos dos que aguardavam na fila e também dos que já estavam instalados
na engenhoca, aguardando que a mesma entrasse em movimento. Por alguma razão,
eu tinha uma imensa satisfação em perceber a ansiedade daquela gente. Eu ficava
me perguntando por que eles se dispunham a entrar no brinquedo – e, ainda por
cima, a pagar por aquilo – se estavam com aquele ar de desespero. Lembro até de
ter criado uma classificação para o povo da fila do Sputinik: os apavorados, os
com ar de desespero arrependido e os falsos corajosos. Quanto a estes, bem,
eram geralmente homens; que pousavam de corajosos durante a fila mas que – pelo
binóculo eu via – saiam do Sputink cambaleando e com cara de paisagem. Em todo
caso, considerava aquela gente como um punhado de idiotas. Praticando o esporte
da racionalidade, não tinha o que pensar de diferente de quem se submetia,
voluntariamente (e pagando para isso) a uma coisa que lhe punha de cabeça para
baixo e lhe fazia girar, sem controle nenhum sobre a vontade e, eventualmente,
sem nenhum controle sobre o ventre.
Naquele tempo o Círio, propriamente, era uma festa passada
na casa de meus avós maternos, que, por sua vez, habitavam o Manoel Pinto da Silva,
outro local privilegiado para acompanhar a festa. Nesse caso, tratava-se de uma
festa familiar, de índole feminina: minha avó e as mulheres da casa e da
família organizavam o tradicional almoço. E o que realmente era incrível era a
vinda dos parentes que haviam ido morar no Rio e em São Paulo; tios e primos
muito queridos, que traziam consigo afetos, é claro, mas muitíssimas histórias,
risos, novidades. Era uma troca intensa, muito emotiva, vivenciada na fusão
entre fé e saudade, uma fusão de horizontes bem conhecida por muitos paraenses.
Na casa de meu pai havia menos expansão, mas uma ótima conversa. Lá também
havia o almoço do Círio, mas era diferente: era menos familiar, menos emotivo.
Era um almoço, principalmente, para amigos; para os amigos dos meus avós, com
menos familicies e, creio que posso dizer, absolutamente nenhum arroubo
religioso. Meus avós paternos tinham uma fé comedida, um tanto tímida. O almoço
de Círio era mais uma ocasião social, penso que até mesmo menos ajambrado que o
famoso Dia de Reis da casa deles, esse sim, por alguma razão que nunca entendi,
celebrado com paixão por minha avó paterna.
O catolicismo daquele tempo tinha elementos, digamos assim,
fantasmáticos, que hoje arrefeceram: nos Círios da minha infância havia muita
gente de mortalha. Não posso crer que a saúde pública tenha avançado tanto, no
Pará, a ponto de que as mortalhas tenham se tornado instrumentos inúteis. Penso
que houve mesmo é um constrangimento social, talvez de índole estética. Outra
coisa que deixou de haver foram os grandes carros, como o Carro dos Milagres e
a Barca dos Anjinhos que compunham o cortejo do Círio e que lhe conferiam uma
verticalidade que hoje não está mais presente. E não só uma verticalidade, ou
seja, altura: também uma diagonalidade, se posso dizer assim para evocar uma
volumetria que os Círios de hoje perderam. O Círio de antigamente era um tanto
barroco e, com esses carros, era dramático, mais impressivo, fantasmático.
Anos mais tarde, quando meu avô materno morreu e minha avó,
Nida, foi morar conosco, na casa do Lago Azul, o almoço do Círio foi
transferido para lá. Aliás, posso dizer que foi transferido com grande impacto,
porque, por alguma razão, ele se transformou numa festa pantagruélica, para a
qual muita gente afluía: os parentes de Rio e São Paulo, como sempre, mas
também os parentes de Belém, os amigos e, por vezes, os parentes dos parentes e
os amigos dos amigos – que não formavam uma facção, bem entendido. A casa era
grande e o serviço da mesa – digamo-lo assim – era esmerado. E, se posso falar,
sobretudo, da maniçoba da d. Nida, posso também falar das sobremesas, em
particular dos quindins e do Quindão, das “castanhas dengosas”, com cobertura
de cupuaçu ou maracujá, das não paraenses, mas aclimatadas bavaroises e das estranhas, mas fabulosas, tapioquinhas quadradas
de bacuri. Hummm, saudades daquilo tudo...
Nesse tempo, era fundamental vermos um pouco da Trasladação
e do Círio. Sem uma base permanente na “cidade”, pois meus avós paternos também
já haviam morrido e não havia mais, assim, o apartamento do Largo de Nazaré,
apenas escolhíamos um ponto de observação, geralmente em uma rua transversal à
avenida Nazaré. Esperávamos a berlinda passar e então retornávamos para casa.
Só depois disso é que os convidados chegavam e a festa começava. Era um momento
fugaz, mas “ver a Santa” era algo absolutamente importante. Minha avó, minha
mãe, as cunhadas de minha avó, suas sobrinhas e todo um cortejo iam, durante as
semanas seguintes, inúmeras vezes, “ver a Santa na Basílica”. Já eu não gostava
dessa programação; mas me sentia culpado de não ir. Preferia não ir, mas me
sentia culpado. Aos poucos, me acostumei com a culpa e, então, por alguma
razão, deixei de me sentir culpado – contanto “visse a Santa”, pessoalmente, ao
mesmo uma vez.
Anos mais tarde, como é natural, tudo se foi mudando. Minha
avó e minha mãe se foram muito cedo e os primos, amigos, parentes dos parentes,
amigos dos amigos, todos, bom, todos eles se foram indo. Alguns estão dormindo,
profundamente, e outros simplesmente se foram. O velho arraial deixou de
existir. Aquilo que há hoje em dia não tem nenhuma relação com ele. O próprio
Largo de Nazaré deixou de existir e foi transformado numa praça ridícula. O
carro dos Milagres desapareceu, bem como todos os outros carros que formavam o
cortejo do Círio. Minha irmã e meu irmão casaram-se e o almoço de Círio deles
é, necessariamente, na casa de suas sogras – como disse, o Círio é uma festa
feminina, e essa condição deve ser respeitada. Como minha sogra é espírita e possui
certa cultura de diminuir a importância do evento, num arrivismo que,
sinceramente... e como a Marina, minha mulher, considera que cozinhas são
campos potencialmente minados que as planícies de Angola para que pise lá com segurança, coube a mim, ao
longo dos últimos anos, organizar, na minha casa, o almoço do Círio. Família
pequena, tempos outros, trata-se de uma festa com outra natureza, mas que se reproduz,
na insistência da boa mesa paraense – informo que o segredo dos doces da minha
avó se foram com ela, para sempre, mas que meu pato no tucupi tem melhorado,
ano a ano – e na imensa e transcendental responsabilidade de “ver a Santa”.
Ontem a Marina me perguntava se eu não sentia alguma
nostalgia desses outros Círios, bem diferentes, que vivenciei em outros tempos
da minha vida. Pensei e observei que não, por que, vejam bem, meus Círios
atuais têm uma coisa que, se perceberem, esteve sempre de fora de tudo o que
relatei anteriormente: um estar-na-rua, uma imersão na coletividade de
sentimento, que não pode ser experimentado, senão apenas muito tangencialmente,
por quem está na janela, na varando, no canto da rua para ver a Santa passar.
Explico. É que hoje tenho o hábito de acompanhar, na rua, a
muitos dos movimentos do Círio. Descobri o grande prazer que há em atravessar o
percurso previamente que a Santa, ir encontrando amigos e conhecidos, ver um
pouco dos corais que se apresentam em todo o percurso e, sobretudo, curioso
como ventre que me fez me fez, ir observando as pessoas na sua vivência do
Círio, ir descobrindo seus mundos, ir brincando de pensar o que elas estão
pensando.
Já não preciso mais de um binóculo para olhar bem para as
expressões das pessoas. Tampouco já não moro longe, para que veja rapidamente a
berlinda e retorne para a distante casa onde lá aguarda-se o tal almoço. Mesmo
tendo, em minha casa, uma varanda que permite uma razoável visão da procissão,
o que havia de bastar, no tempo da minha infância, para mim e para a maioria
dos meus parentes, não consigo dispensar, atualmente, essa proximidade, o ato
de caminhar entre as pessoas, não movido por um sentido religioso dogmatizado,
mas, certamente, por uma espécie de sentimento religioso que se deve ao ato de encontrar
o coletivo, intuí-lo. Nem procuro a Deus e nem o encontro. Mas tenho uma irresistível
vontade de olhar para as pessoas encontrando Deus. Bom, na verdade, essa
tentação é de ver a pessoas encontrando qualquer coisa que achem interessante,
mas é claro que o Círio é época propícia para quem encontrem Deus, ou melhor,
Nossa Senhora de Nazaré, um tanto mais que a outras coisas que há por aí.
Vou terminando, bom Círio a Todos.
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