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O FSM como democracia de alto impacto

Publiquei este artigo em abril do ano passado, na revista Amazônia. Fica como contribuição, acho que tem a ver com esse insólito esquecimento da edição de Belém do Fórum:

O FSM como democracia de alto impacto
Fórum Social Mundial passou por Belém, seguiu, e há de ter levado coisa e gente junto consigo. Há, também, de ter deixado algo. As reflexões, inflexões e flexões que lhe são próprias, e que vão muito, imensamente, além da papa que a imprensa local disse a respeito, hão de ter semeado em campo contundente. O que se deve fazer é regar e aguardar. Digo isso pensando num sujeito de aparência nervosa, incomodado pelo ocaso do neoliberalismo e cuja identidade, certamente, não revelarei e que, alguns dias após o Fórum, procurava me incomodar com meia dúzia de reflexões políticas de índole metafísica e hálito amargo. Dizia ele que o Fórum era o ocaso das esquerdas, um cume apolítico, etc, e justificava isso observando que o Fórum “não deixou nada de concreto”.
Como não tenho grande paciência para o debate que não é debate, mas duplo monólogo, ouvi-o com generosidade parcimoniosa e deixei para escrever por aqui o que eu teria a lhe responder e que se resume numa única colocação: o “concreto” de que fala, tal como pensa, não é possível, desejável e nem necessário. Porque o Fórum é uma experiência democrática de alto impacto, e isso, tal como outras experiências congêneres, democráticas e de alto impacto, não produzem centralizações, unificações ou sínteses, mas sim polifonias.
Cabe distinguir o que é uma democracia de alto impacto do que é uma democracia de baixo impacto: a primeira é uma experiência contundente e centrífuga, na qual o centro se perde, na qual todos falam e todas as possibilidades disputam o controle do centro. A democracia de baixo impacto, por sua vez, é uma experiência de construção do consenso, de centramento, de acordo.
Uma eleição, por exemplo, é uma experiência democrática, mas de baixo impacto. Nela, as possibilidades são, sucessivamente, resumidas. Reduzidas. Isso é necessário, certamente, mas não equivale à totalidade do que é a experiência democrática. Ao contrário, uma revolução, uma discussão e o Fórum Social Mundial conformam uma democracia de alto impacto, ou seja, uma experiência coletiva sem centramento, polifônica.
A sociedade brasileira, atiçada pelo discurso formatado dos mídia – que é o discurso do consenso entre as camadas medianas e as elites – tende a considerar a O democracia de baixo impacto como a única justa, honesta e possível, e é por isso que as camadas, digamos assim, empapadas, da sociedade brasileira, tendem a considerar como “perigosas”, ou algo assim, a toda experiência que não produza consenso.
A pergunta a fazer, efetivamente, é amesma que, muito irritado, eu fiz esta semana para a senhora que insistia em me vender prateleiras mais largas do que meus livros precisam (pela razão simplória de era o formato padrão da empresa – de gente que usa prateleira para botar coisas que não são livros, imagino): e por que tem que ser assim?
Por que o Fórum precisaria produzir uma síntese, uma declaração, uma carta ou coisa que o valha? Por que não se pode aceitar que o processo democrático não precisa ser contido, passivo e consensual – se esta dinâmica é própria da sua natureza?
O que se tem num Fórum Social Mundial é uma polifonia de movimentos e dinâmicas sociais. Em geral são agentes sociais progressistas que não precisam se partidarizar para atuar politicamente. Algumas vezes essa idéia parece fugir da própria esquerda partidarizada, embora, digamos, não precise, necessariamente, ser assim.
Polifonia que dizer simultaneidade das vozes. O que se precisa é ir mais a fundo na compreensão e na tolerância da democracia. Que será da esquerda se não souber disso? Que será da esquerda se acreditar que a democracia se reduz ao voto? Que será da esquerda se aceitar o argumento narcótico e monofônico das direitas tolerantes?
O caso é que, em razão desse consenso entre elites e classes médias e de sua conseqüente midiatização, a política está se tornando monoglóssica. Se a política sempre foi um ato cênico ela se tornou, na contemporaneidade, um ato, sobretudo, midiático. Essa transformação, que numa outra medida equivale à passagem do teatro ao cinema e do trágico ao dramático, transforma nossas perspectivas sobre tudo o que seja análogo ou pautado pela política, inclusive sobre a democracia.
A idéia utopista de uma democracia midiática, ou de uma democracia comunicativa, gerada e mantida pelas facilidades da tecnologia, pela internet e pelas práticas e reivindicações do direito à informação permitem uma recolocação do problema da democracia, senão em níveis absoltos, posto que as forças de concentração e de controle se têm exacerbado em todo o planeta, ao menos em níveis relativos, já que uma cultura digital grassa, heroicamente, irrigando a sociedade.
Eis aí, nessa cultura digital, a diferença entre a democracia de alto impacto e a democracia de baixo impacto. O Fórum, em Belém, propôs a substituição de relações de poder por relações de autoridade compartilhada, a qual se daria não pela representação monoglóssica do indivíduo mas por meio de processos de gestão coletiva e de respeito à diversidade das vozes e das enunciações, o que equivaleria a uma radicalização da democracia.
A democracia de baixo impacto que temos hoje é um modelo que reduz a compreensão do processo democrático aos mecanismos eleitorais e a algumas concessões à participação política, preservando, nas mãos dos mais privilegiados, todos os instrumentos coercitivos juridicamente estabelecidos. Ora, uma sociedade que é politicamente democrática e socialmente autoritária, e mesmo fascista, resulta numa sociedade sem iguais. E o seu modelo de democracia, insuficiente para dar conta das demandas reprimidas e pouco crítico para se auto superar, resulta numa estrutura de contenção mais que de promoção. Só é possível agir democraticamente se se criticar, em permanência, a democracia. Se se lhe projetar novos formatos, necessariamentemais radicais.
Uma democracia de alta intensidade, de alto impacto, por assimdizer, precisa ser uma democracia baseada na cultura do acesso. E aqui entra o papel da comunicação – de uma comunicação livre e não-hegemônica, bem entendido.
A democracia de alto impacto não precisa deixar nada de concreto, tal como o Fórum também não tem essa veleidade, porque a sua contribuição está em outro plano, no plano do acirramento das idéias, da provocação, do incômodo estimulante que faz a história caminhar.

Comentários

Luciane Fiuza disse…
oi, professor. muito bom. tô levando p meu blog. abs! Lu.
Benny Franklin disse…
Mestre!
Suas reflexões, inflexões e flexões são como alimentos na mesa do mundo!
Boa!
Laura Haddad disse…
Parabéns mais uma vez, professor Fábio. O senhor tem o dom da palavra. Cada vez mais claro, apesar da profundidade dos assuntos.
Carlinhos disse…
Fábio, impossível não te perguntar se, a teu ver, a democracia interna do PT é de alto ou de baixo impacto... Sim, porque haja porrada...

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