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Um manifesto político?

Uma notícia que foi pouco comentada, mas que me parece extremamente importante, foi a decisão do deputado federal José Eduardo Cardozo (PT-SP), secretário-geral do PT, de não mais disputar eleições. Sua fala é altamente relevante para a política nacional:
Desde a última campanha eleitoral, disse e repeti, por diversas vezes, que achava difícil a possibilidade de vir a participar de uma nova eleição à Câmara dos Deputados se não houvesse uma radical reforma do sistema político brasileiro.
Fazia isso por já não me sentir confortável em disputas onde os recursos financeiros cada vez mais decidem o sucesso de uma campanha, onde apoios eleitorais não são obtidos pelo convencimento político das idéias, pelo programa ou pela própria atuação do candidato proporcional, mas quase sempre pelo quanto de ’estrutura’ financeira ele pode distribuir.
Hoje um político sério no Brasil pode vir a ser punido ou mesmo correr o risco de perder o seu mandato, por um mero descuido ou erro formal. Será então exposto à impiedosa execração pública que o tratará como um criminoso de alta periculosidade, com seu nome e fotografia estampado pelos órgãos de comunicação, sem que se busque saber, exatamente qual “delito”, de fato, ele cometeu. Seus familiares, mesmo conscientes da lisura ética do punido, amargarão a vergonha e a zombaria pública, recebendo também uma sanção social implacável.
Já os corruptos cuidadosos que podem pagar bons e caros técnicos que os assessoram, costumam não cometer erros desta natureza, ao engendrarem suas grandes “falcatruas”. Bem assessorados, quase sempre saem “limpos” das disputas eleitorais e aptos a continuar a assaltar os cofres públicos com a mesma desenvoltura de sempre. Quando, porém, eventualmente, são pegos pelas malhas da lei, já possuem os cofres nutridos para pagar bons advogados e fortuna suficiente para fugir da execração social em lugares acolhedores do mundo.
 Não bastasse isso, a generalização e a banalização da idéia de que todo político é “desonesto”, não pode deixar de abater ou desestimular os que buscam comportar-se com a dignidade e a ética que o respeito ao voto popular exige. Não há nada pior para alguém que vive com dignidade no mundo da política, do que, diante de uma acusação qualquer, ver que a sua palavra ou a ausência de provas incriminadoras, não afasta nunca a “certeza” da sua “culpa”.
Se na vida comum se costuma dizer injustamente que “onde há fumaça há fogo” (injustamente, porque a fumaça pode ter outras “causas químicas”), na vida de um político, o senso comum costuma sentenciar que se há “a leve aparência da fumaça, a existência do fogo é certa”. E não admite, jamais, prova em contrário. 
Por isso, me empenhei muito na defesa da reforma política. Defendi o financiamento público das campanhas, por entender que as formas atuais de financiamento privado das eleições geram corrupção e uma real ausência de isonomia entre os candidatos.
Defendi o voto em lista partidária porque entendo que, em uma eleição, um partido deve disputar seu programa de forma unitária, sem que pessoas que estão do mesmo lado busquem os votos um dos outros, personalizando a competição e reduzindo a chance de uma politizada e madura disputa eleitoral. Tinha e tenho consciência de que somente uma reforma política aguda e radical poderia romper com a cultura dominante de execração preconceituosa de todos os que optam pela vida política, forçando a diferenciação do joio do trigo pela sociedade. Mas junto com outros companheiros de luta, fui derrotado.
Admiro e aplaudo, portanto, todos aqueles companheiros que, tendo a mesma visão ética que possuo da ação política, ainda conseguem transformar o desestímulo em energia para uma disputa proporcional dentro deste sistema eleitoral e desta conjuntura adversa, como, aliás, fiz tantas vezes. Só que todos devem saber respeitar os seus limites e avaliar, diante do que sentem e vivem, quando poderão ser mais úteis em outras frentes de luta, na defesa da mesma causa.
É o que hoje, após tantos anos de atividade parlamentar, percebo em mim mesmo diante da perspectiva de participar de um novo pleito eleitoral para a disputa de uma vaga na Câmara dos Deputados. Aprendi na minha vida a não entrar em disputas quando não se tem ânimo para enfrentá-las ou não se sente prazer e alegria em fazer um bom embate, mesmo quando a vitória é possível.
O sistema político brasileiro traz no seu bojo o vírus da procriação da corrupção e das práticas não republicanas, mas também inocula , ao mesmo tempo, outro vírus que atinge o ânimo dos que gostam do Parlamento, mas não gostam das condições, das regras, das calúnias e das incompreensões que forjam o caminho do acesso e o exercício de um mandato proporcional. Embora tenha lutado muito contra o primeiro, fui, lamentavelmente, atingido pelo segundo.
Por isso, deixarei, ao final deste ano, a Câmara dos Deputados, mas não abandonarei a militância política. Estarei sempre à disposição do meu Partido e do projeto político-ideológico que defendo para o país, para assumir qualquer tarefa que me traga ao espírito o ânimo e a alegria do bom embate, na construção de uma sociedade justa e fraterna. Peço de todos os que sempre me apoiaram, mesmo que eventualmente agora os decepcione, a compreensão deste gesto fundado em razões estritamente pessoais e de foro intimo.
Minha decisão não é uma renúncia à causa, mas apenas uma mudança do campo de atuação política. Quero deixar a paralisia que o desestímulo em disputar uma candidatura proporcional me traria, transformando-a em energia positiva para novos embates políticos. Quero me voltar integralmente à construção da nossa candidatura presidencial, à eleição dos nossos governadores e governadoras, e à eleição de uma bancada parlamentar forte que possa comandar a realização de uma verdadeira reforma política democrática.
A reflexão de Cardozo, um dos políticos mais sérios que já conheci, estorna força moral à política como um todo, mas ao PT em particular.
É preciso refletir sobre isso. A experiência que temos, próxima de nós, é que a subversão da verdadeira política pela política eleitoral, de ocasião, tem rompido mais que amizades verdadeiras, tem rompido coerências. Se não tomamos cuidado para evitar que a política de balcão domine a política de projeto, se continuarmos a evitar a reflexão sobre o longo prazo, se persistirmos substituindo o projeto, o acordo e o partido pelos interesses provinciais e paroquiais, estaremos traindo a confiança do voto que nos levou ao poder.
A fala de Cardozo tem o peso de um manifesto político pela coerência. O que ele denomina “reforma política” tem uma dimensão superior à da reforma político-eleitoral-partidária nacional – aliás, no que concordo com ele ser essencial. Tem o valor de assinalar que o PT precisa levar em frente a batalha por essa reforma sem se intimidar. Que setores do partido precisam reencontrar motivação para não perder sua identidade como ética, popular e que pensa o longo prazo.

Comentários

Anonymous disse…
Cardozo dá um exemplo de dignidade e uma lição de política. Mostra o valor da militância e a necessidade de preservar o PT desse jogo, que, como ele mostra, está corroendo as entranhas da democracia brasileira. Parabéns ao nobre deputado.
Maria Lúcia Malheiros disse…
Na minha opinião fazer a reforma política é o grande desafio do mandato Dilma Roussef, caso seja eleita. Digo isso porque provavelmente ela não terá o cacife político que Lula tem. E mesmo Lula não conseguiu fazê-la. E é a mais imprescindível das reformas necessárias ao Estado brasileiro. Esse documento produzido pelo deputado José Eduardo Cardozo representa a margem da política. Imagino que os políticos e os partidos, inclusive o PT - que não é o meu partido, mas pelo qual tenho respeito - vão precisar escolher, brevemente, de que lado querem ficar.
Cláudia Braz disse…
Para mim, não existe político honesto. Atrás de todo gesto político tem uma desonestidade inerente. Quem entra para a política ou já é desonesto ou fica desonesto.
Edney Martins disse…
Fábio, muito bom trazeres isso à baila. Tb achei que o gesto dele teve uma repercussão muito pequena diante do tamanho das questões que ele levanta. Cardoso fala a parti do PT, mas não fala só para o PT, fala para todos nós, estejamos ou não mais próximos dos partidos. A questão é real e grave, e o momento é de pensarmos a longo prazo, nacional e regionalmente.
Anonymous disse…
A preocupação é muito louvável. Mas aí vem o Puty e escreve no Liberal de domingo que Belo Monte é essencial porque vai permitir a instalação de duas fábricas de alumina no PA. Uma hidrelétrica que só vai funcionar cinco meses por ano e duas fábricas de alumina e deixamos de ser almoxarifado da União?!?!?!? Quando todo mundo sabe que os riscos ambientais são trágicos e nunca corretamente computados? É muito desrespeito com a nossa inteligência, para respeitar sabe-se lá quais compromissos.
Anonymous disse…
E dá para separar essas duas coisas? Será que uma reforma política seria suficiente para regulamentar as "contas" da política? Será que adianta?
Bia disse…
Boa tarde, Fábio:

memorável a fala de Cardozo, mas lamento sua saída da política eleitoral. A frase de Lorca - se a esperança se acaba e a Babel começa, que chama iluminará os caminhos da terra? - está mais atual do que nunca.

Um abraço.
Marise Morbach disse…
Fábio, concordo com a sua reflexão sobre o gesto de Cardozo; aproveito para dizer que gostei muito das alterações que fizestes no blog. Um abração!

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