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Cartas de Lisboa 3: A cidade onde nada acontece

A cidade onde nada acontece
Felipe Horácio-Castro
Lisboa, a cidade onde nada acontece. Caminho de madrugada pela rua da Mandragoa. Numa casa de fados acotovelam-se turistas, prostitutas, freaks e chulos. A escala de Mercali não seria suficiente para classificar o volume que punham ao som. Uma portuguesa grandalhona, em contorções admiráveis e com uma rosa na orelha cantava um fado maluco, desses que ora se inventam «para renovar o gênero». E batia palmas, muitas, mais do que musicalmente necessário. Aliás, mais batia palmas que cantava. Os seres humanos ali presentes, porque não se conheciam todos, tocavam-se pelos cotovelos. Era a maneira que tinham de dar um sentido às suas vidas : tocarem-se desastradamente com os cotovelos. Não, nada acontece em Lisboa, desisto de averiguar e continuo meu lento passeio pela madrugada, porque sou insone e é esta a maneira pela qual a natureza me condena à reflexão.
- Faz cuidado aos assaltos, diz-me Jacinto, o escritor meu vizinho, Que Lisboa está um Rio de Janeiro.
- Desde que os Africanos chegaram…, suspira a preconceituosa e tortuosa mulher-a-dias que limpa sua casa e lhe cose a roupa. E como são os dois uns torturados, não dou ouvidos, porque eu que ando pela cidade à noite é que sei, e não eles, o primeiro porque não gosta de gente e se sai de casa é uma vez ao mês e a segunda porque fica na poltrona a ver televisão.
Eu é que sei que nada acontece em Lisboa. Que, aliás, provavelmente, é a única cidade do mundo onde cinema tem intervalo. Fazem isso para trocar a bobina, suponho… e para vender seus açúcares artificiais. Dois, três intervalos de dez minutos cada por sessão, onde nada acontece e onde nada se tem a falar, nem mesmo do filme. Dia desses contabilizei os intervalos do dia inteiro de exibição e percebi que dariam uma sessão inteira, uma sessão que perdem, de ingressos, a troco de vender balinhas de sabão.
- Isso, porque tu não conheces direito Belém, nada acontece em Belém…, diz minha amiga Rita, garantindo-me que há em Belém coisas tais como cinema ter intervalo. Pergunto quais mas ela apenas responde, enigmática: - Ih, tu nem sabes, tu nem sabes…
E continuarei sem saber, se depender de Rita, que diz que não quer voltar para Belém, que diz que nada acontece em Belém mas que, mesmo nada lá acontecendo, não para de falar de Belém. Ainda que nada me conte sobre Belém. Enigmática Rita de Cássia. Faz-me pensar que esse sangue etéreo que as cidades dão-se, em herança uma de outra, contém também o código do nada-acontecer. Pois Belém é, de Lisboa, uma filha dileta. Cá e lá, boas e más fadas há. Encontro seus paralelos : essa comum certeza de que «nada acontece», uma nódoa de lirismo e a incomparável fato de que todos os habitantes dessas duas cidades possuem, possuíram ou posssuirão alguma amiga, prima ou vizinha chamada Rita de Cássia.
E lá na casa dos fados a grandalhona ainda canta (berra) e estala as palmas. Dois freaks resolvem se meter numa briga e saem rolando ladeira abaixo, mas ninguém presta atenção e eles somem na noite. Uma prostituta lê Lautreamont, fazendo charme, porque é impossível ler naquele barulho, porque é impossível ler Lautreamont ou porque é impossível ler Lautreamont naquele barulho. Os chulos, por sua vez, adotam comportamento variado, integrando-se à «contemporaneidade do fado».
E quanto a mim, vou-me embora, porque até andar a minha casa o dia amanhece e chegarei bem a tempo para Jacinto, o escritor, me convidar para um café e dois dedos de prosa, enquanto que sua patológica mulher-a-dias lhe encera as botas.

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