O crítico inglês Irving Howe deu uma das melhores definições da literatura de Saramago: a união de realismo áspero com fantasia lírica. E o descreveu como "uma voz do ceticismo europeu, um conhecedor de ironias".
Para mim, a literatura de Saramago é, sobretudo, cáustica. Mas não é só, porque se fosse centralmente cáustica, não seria capaz de tanto lirismo. O que prenuncia e o que sucede a suas observações mais ácidas é uma dose tão generosa de lirismo que dá impressão de que se trata de uma acidez meio benfazeja, como o ouro dos porcos da tradição popular, ou como o “ouro dominicano”, que povoou a sabedoria com que se tinha os frades dessa ordem, conhecidos por elogiar tão sarcasticamente seus desafetos que mal se compreendia que estavam sovando seus pobres elogiados. Essa sensação fica mais forte em função dos parágrafos imensos, com falas superpostas e entrecortadas. Tudo isso obsequia a vítima, muitas vezes o gênero humano; outras vezes Estados, morais, igrejas inteiras, religiões, altruísmos e até mesmo a história, como fenômeno.
Havia muito de sabedoria popular em Saramago. Ele próprio vindo do Portugal profundo, camponês e trágico. De vez em quando a voz narrativa parece desaparecer e dar lugar a uma espécie de coro. Um coro popular que não é senão a saberia desse Portugal profundo – dos camponeses subalternos e até da própria história subalterna do mundo que tem, na ironia, no sarcasmo, a sua principal forma de resistência.
Que dizer de uma literatura para a qual confluem um matiz surrealista e uma sabedoria popular, arcaica e camponesa, tão plena dessa sarcasmo? Penso que o seguinte: que as mensuras e demensuras, o surrealismo, a prosa tão cheia de subterfúgios, são a forma de disfarçar essa arma pungente, que fere mais que qualquer outra, que é a ironia. Ela é como o escudo, parte essencial da luta, na mentalidade dos antigos. Pense-se num soldado grego; a imagem dele, a que nos vem à mente, indissocia a espada do escudo. Ambos eram necessários para a luta. O escudo era o vetor de equilíbrio da afronta da adaga, espada ou lança. Ambos seriam necessários para as guerras, deles e nossas, porque o sarcasmo, sozinho, não vai longe. Porém, o sarcasmo revestido, delineado, sugestivo, barrocamente recoberto com fios de ouro, fere de morte.
Acho que a principal lição que Saramago deixa é que a literatura pode ser resistência. Mais que isso: resistência popular, a que é feita pelo coro, a que não assina, a que dispensa a identidade (atributo dos heróis e dos pretensiosos). De certa maneira, inclusive, não deixa de ser altamente significativo o fato de que tenha sido ele o primeiro Nobel literário da língua portuguesa, porque o português, como a cultura portuguesa, são frutos de uma resistência histórica que só foi exitosa porque soube se refinar e, assim, se proteger na hora certa dos muitos inimigos. Não é por nada, e nem sem razão, que Portugal restou o único espaço da península a não se “castelizar”.
Veja-se, à propósito, que a literatura portuguesa surge por meio de um fenômeno conhecido como “cantigas de maldizer”... Ora, que esperar de um maldizer que venha cantado?
Há alguns anos inventei uma fórmula para ler melhor José Saramago. Primeiramente lia um conto de Miguel Torga, esse outro grande escritor português. Preferencialnente um de seus “contos da montanha”. E depois lia Saramago. Com isso, conseguia encontrar um referencial de purismo para o que, em Saramago seria obliterado pelo sarcasmo. É que Torga, camponês como Saramago, não era, no entanto, capaz do sarcasmo. Então, essa diferença aguçava meus sentidos para entender o jogo de superposições de Saramago. A reverência pela natureza, que estava presente em ambos, repentinamente se abria com voluptuosidade em Saramago. Eu acabava assimilando melhor Torga e ficando com os sentidos mais alertados com Saramago. Fazer isso era como beber um vinho que só será compreendido pelo vinho seguinte, sendo que este, por sua vez, será melhor aproveitado se vier após o vinho anterior.
Li profundamente José Saramago. Fiquei profundamente comovido com muitas de suas obras. É um autor precioso. Sempre senti pena que os que não falam português precisem lê-lo traduzido. E, acreditem, isso também não deixa de ser a vitória de uma certa resistência...
A obra dele foi tardia, pois por anos trabalhou como mecânico, um burocrata da Previdência, gerente de produção de impressão, revisor, tradutor e jornalista. Ao primeiro romance, publicado quando tinha 23 anos, seguiram-se 30 anos de silêncio. Mas isso tudo não foi tempo perdido. Estão lá, na sua sabedoria. O melhor livro? Bem as sabe que isso vai de cada um, mas para mim é “O Ano da Morte de Ricardo reis”. É o que mais gosto, embora a figura do Deleatur, na “História do Cerco de Lisboa”, tenha permanecido para mim, até hoje, enigmática. Ou como aquela imagem louca da península Ibérica se despregando da Europa e vindo navegando até a América, para se reunir a suas antigas colônias, em “A Jangada de Pedra”? Ou como aquela raça de cachorros que desde o ano mil parara de latir e que repentinamente voltou a fazê-lo quando isso aconteceu? E como descrever a história daquele trio de excêntricos ameaçado pela Inquisição? Um padre herético que constrói uma máquina voadora e os dois amantes que o ajudam: um ex-soldado melancólico e a filha de uma feiticeira que tem visão de raios-X... E os aperreios de Ricardo Reis, então, que para mim eram, simplesmente, aperreios de castidade, que o faziam resistir, na sua devoção pela “menina Marcenda”, moça para casar, à tentação trigueira daquela arrumadeira – sim, merecedoras de odes, pastora como era – que era Lídia.
E além da literatura, muita há-se de falar sobre o homem Saramago. O homem Saramago era austero. No obituário que lhe dedicou hoje e que há pouco eu lia, o The New York Times o definiu como “commandingly como um pano seco”. Tinha ar de professor de antigamente. Seu anticristianismo produziu estoques para o comércio das grandes idéias. Por exemplo, quando afirmou que a história humana teria sido muito mais tranqüilo se não fosse pela religião. E isso sem falar de sua atitude em deixar para sempre o país quando o governo português, pressionado pela igreja Católica, fez-lhe aquela palhaçada, que mancha toda a história futura de Portugal...
Do seu comunismo era sincero como o das crianças que ainda não foram apresentadas à religião. Aliás, não sei se recordam de seu discurso, quando recebeu o Nobel. Nele, Saramago falou com admiração de seus avós, camponeses analfabetos, que, no inverno, dormiam na mesma cama que seus leitões e que lhe transmitiram o gosto pela fantasia combinado com o respeito pela natureza.
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Luíza.