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Cartas de Lisboa 5: Ossos do ofício

Ossos do ofício
Felipe Horácio-Castro
Desculpem pela ausência. Forçada, à causa do trabalho, porque o trabalho me tirou de Lisboa por alguns dias. Sabem, como está escrito aí ao lado nessa minha apresentação de mim, ganho a vida como restaurador. Sei que há qualquer coisa de estranho em ser restaurador. A começar que tal coisa não parece ser profissão, mas diletantismo de artista frustrado que, não podendo pintar, restaura o que os outros pintaram. Bem, não é nada disso. Nunca quis ser artista e, em conseqüência, jamais frustei-me por não sê-lo. Além do mais, não sou restaurador de pinturas, mas de metais, sim, coisa mais estranha ainda, não é? Ok. Acontece que no velho mundo andaram fazendo muitas coisas em metal, de relicários a coroas de Cristo, de cabos de bengala a gradis de palácios episcopais. A Igreja, essa então, como um ímã, se atraiu sempre por metais. E como a Igreja pobre não é, muito há sempre o que fazer, de maneira que é possível ganhar a vida restaurando metais.
A profissão não é difícil, por si mesma. Dá para aprender lendo livros e fazendo uns cursos. Eu, por exemplo, a aprendi de enxerido. Era para eu ser advogado. Passei a juventude dizendo que seria advogado e fiz três anos da faculdade de direito, achando tudo aquilo mais do que chatíssimo. Percebi que não tenho a menor condição de advogar em causa de ninguém. Sou de uma incompetência absoluta tanto para defender como para acusar, qualquer que seja a questão, qualquer que seja a situação. Fui professor (de história) numa faculdade e nunca dei uma nota menor do que oito. Fui sorteado para ser jurado de tribunal e logo logo me dispensaram, desconfiados, porque perceberam que eu sempre inocentava os réus, por mais bárbaros que tivessem sido seus crimes. Sabendo-me brasileiro, convidaram-me no ano passado para ser jurado de um baile de fantasias infantis, durante o Carnaval. Provoquei um mal estar geral dentre as mães ao atribuir a mesma nota para todos os concorrentes. E o pior é que dei a nota média, ainda que minha intenção inicial fosse atribuir-lhes a maior nota. Pensaram em impugnar meus votos, incomodados com minha imparcialidade absoluta, mas temeram ferir-me e inventaram um tal « voto do público » para arranjar as coisas. Inês, minha mulher, que é uma advogada competente e ponderada, costuma dizer que falta-me todo senso de justiça e, dentre meus colegas de turma na faculdade eu era considerado o flagelo, o desastre, o pior de todos os estudantes de direito que jamais passaram por uma universidade em Portugal.
Percebendo que as coisas não dariam certo, resolvi me inscrever numa faculdade de história. Mas o mesmo senso de justiça faltou-me como historiador. Eu era absolutamente incapaz de qualquer observação científica dos fatos. O materialismo dialético, então, foi algo que jamais me pareceu fazer o menor sentido. Alguma afinidade tive, confesso-lhes, com a «história nova» dos franceses : o estudos das mentalidades, das emoções sociais, das formas do medo e da tristeza, etc, e, assim, consegui ter um diploma e até mesmo um mestrado em «história das estratégias marítimas e dos combates navais portugueses».
Não sem outras oportunidades, deixei-me fixar a alguns livros sobre restauração e assim… Mas deixem que lhes conte que estive ausente deste site, nas duas ultimas semanas, por causa do trabalho. E quase não volto, viram?, se dependesse da raiva animal que meu principal concorrente versa sobre mim. Trata-se de um espanhol maluco de Gijón que tentou matar-me pela segunda vez no prazo exíguo de três anos. Sabem, somos concorrentes na restauração de metais e ele me detesta, não sei bem por que. Diz que lhe roubei a clientela. Vocês, que são meus leitores e que me conhecem um pouco, devem imaginar que eu não sou de sair por aí provocando a ira das pessoas. A não ser que seja por desatenção.
Somos três restauradores em metais na Europa – ao menos três os que estão, de modo mais ativo, no mercado. Eu em Lisboa, o zangado lá de Gijón e um velhinho bem educado em Roma. Disputamos entre nós os trabalhos. Seria tudo suficiente para três, e até para quatro ou cinco, se quatro ou cinco fôssemos, e eu mesmo até que gostaria muito de ter mais companheiros de trabalho.
Da última vez, o espanhol atacou-me com uma faca sem dentes. Tudo foi muito ridículo, mas também muito engraçado, e lógico que a coisa toda pegou muito mal para ele. Uma senhora importante que estava ao meu lado teve uma crise de risos e não se pôde fazer nada mais para impedir que o espanhol ganhasse fama de doido. Desta vez aconteceu no Luxemburgo, durante um seminário sobre restauração. Quiz o acaso que eu sentasse à sua frente, no auditório onde se dava a abertura do evento. Ele descobriu-me, achou que era provocação e, descontrolando-se repentinamente, me deu um empurrão. Recordo que tive tempo de cumprimentá-lo e fazer uma pequena piada sobre a evolução dos seus métodos de violência antes de perder os sentidos, porque, pelo que me contaram, ele bateu com sua grande testa na minha. Desmaiamos os dois, mas eu por dois minutos e ele por quinze. Tentem imaginar meu constrangimento diante da ineficiência da sua pulsão assassina. Ainda bem que me resta um pouco de humor.

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