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A entrevista com Maffesoli

Pode-se fundar, ou pelo menos legitimar a posteriori um poder institucional sobre o ”ridículo”? Crê que se esteja assistindo a novas formas de “saturação” do discurso político através de um jogo por baixo onde não se compreende mais onde esteja a mídia e onde a mensagem, qual o meio e qual o fim?
Retenho que não se possam compreender adequadamente as grandes características da pós-modernidade a não ser considerando e recorrendo à comparação com as manifestações pré-modernas. A teatralização do político é, de fato, algo que se atém de modo particular à sensibilidade mediterrânea e realiza regularmente um retorno na história e nas vivências humanas: pensemos em Calígula, em Heliogábalo, na festa da deusa Razão durante a Revolução francesa, nos milhares de cerimônias inúteis e de ritos profanos que tem circundado ou circundam a nossa vida. Poderemos recordar-nos, a tal propósito, da fórmula do bom velho Marx, segundo quem toda coisa que se apresenta na nobre forma da tragédia é destinada, antes ou depois, a representar-se, mas transfigurada em farsa ou em vulgar comédia. Somente colocando-se neste nível – o nível da farsa – podemos entender o que é a “transfiguration du politique”. Transfiguração que se rege segundo um deslocamento fundamental de nosso eixo político: a passagem da convicção à sedução. A sedução não é tanto uma atitude programática, um conteúdo preciso, quanto uma tonalidade emotiva que assumiu como ponto privilegiado o “sentir”, através da adoção de ‘strass’ e lustrinos e outras paradas à americana. Para citar somente alguns entre os sedutores pós-modernos, podemos recordar Obama, Sarkozy, Berlusconi.
Por que Obama ao lado de Sarkozy e Berlusconi?
Porque, deste ponto de vista, também ele está mais empenhado em seduzir do que em convencer. Mas, trata-se de uma tendência que subverteu o político enquanto tal e é entendido abstraindo – se possível – das personalidades singulares. Esta tendência à sedução corresponde também à saturação de todos os canais emotivos, fato que nos constringe a nos perguntarmos, para o futuro, quais serão as novas formas do viver, do sentir e do estar juntos.
É por esta razão que a “soberania” pode assumir formas grotescas, apresentar-se através de gradações (ou degradações, depende dos pontos de vista) da infâmia e do obsceno. Um clown no poder pode seduzir tanto, se não mais do que um ex-ator de ‘b-movies’ palestrando ou de um alto funcionário dedicado à corrida ou ao teste de Cooper. A sedução opera num nível que a tradicional crítica política ainda não compreendeu. A despeito de tudo, no entanto, além das seduções e dos detritos de um racionalismo que não funciona mais, além das derivas irracionais, na confusão geral avançam novos estilos de vida comunitária. Numa perspectiva um pouco libertária e um pouco anarquizante, retenho que este estar juntos nos aproximará sempre mais de uma federação de micro-entidades autônomas, ligadas transversalmente por novos meios de comunicação interativa. Aqui se joga a sinergia do arcaico e do desenvolvimento tecnológico: formam-se tribos pós-modernas.
Ao mesmo tempo se radicaliza o destaque entre os produtores de opiniões, “que continuam a instilar e a pôr em prática as idéias de um mundo em declínio”, e o mundo destas tribos pós-modernas... Em “Apocalipse” (Cnrs, 2009), o senhor fala de intelectuais que perderam todo senso da realidade, agrupando-os na categoria dos “falsos professores”.
Os intelectuais, os universitários e outros expoentes do saber constituído tendem a ceder sempre mais às sirenes midiáticas, fato que favorece a proliferação de “falsos professores” e a multiplicação de obras “de série B”, que desaparecem ao primeiro sopro de vento. O problema é grande e, sobretudo grave: as elites perderam seu tradicional senso de responsabilidade e estão cotidianamente atarefados em satisfazer um gosto ou uma opinião efêmera. Fato que permite entender ainda mais a razão desta defasagem, da disparidade que há entre a inteligência (aqueles que tem a possibilidade e o poder de fazer e de dizer) e o povo em si mesmo. Nas últimas duas décadas vimos que a suspeita recaía e pesava principalmente sobre os políticos, e posteriormente se direcionou aos intelectuais. Mas hoje, esta suspeita pesa acima de tudo sobre os jornalistas.
Nesta ótica, é incluída e estudada a crise da mídia, porque, tendo permanecido ancorada num modelo obsoleto – os grandes valores da modernidade – não está mais em condições de observar o que está sucedendo em torno dela, nos micro-saberes e na vida de todos os dias.
Crises, choques econômicos, falências pessoais e coletivas, existenciais ou societárias, derrotas eleitorais e assim por diante: no discurso da mídia, a palavra “crise” assume atualmente a forma de “passe-partout”, através da qual se descreve “uma situação que aparece como exceção”, mas que, em sua estrutura interna, parece mais a regra das nossas sociedades. Marx sustentava que o capitalismo é crise. Parece que a esquerda tenha se esquecido desta lição, presa também ela num presente total, incapaz de refletir sobre as longas derivas de (sua) história... O senhor, no entanto, ao de crise prefere o termo apocalipse. Por quê?
Uso o termo em sua acepção etimológica. Apocalipse é o que revela algo que até aquele momento era desconhecido. Não é, portanto, um pensamento apocalíptico no sentido habitual do termo, entendido como termo catastrófico e catastrofista. Ao contrário, o “apocalipse” é aquilo que nos permite compreender que o fim do mundo não é o fim do mundo. Permanecendo na idéia do apocalipse como revelação, creio que se deva relativizar também a concepção habitual de crise. Evitando, acima de tudo, reduzi-la à sua dimensão econômica ou financeira. O apocalipse nos revela que, efetivamente, se trata de uma verdadeira e própria mudança de paradigma. Os grandes valores sobre os quais trabalhava a cultura moderna – razão, futuro – estão deixando espaço a outro conjunto de valores, que convirá analisar. Neste sentido, é preciso reconduzir também o termo “crise” à sua etimologia: juízo.
Seu julgamento versa sobre o “grande cenário” dos temas mobilizadores de nossa época: o presente total, a imanência absoluta.
Efetivamente, creio que se possa compreender uma época a partir de onde esta época coloca o acento sobre este ou aquele outro elemento da tríade temporal “presente – passado - futuro”. Assim, a modernidade foi cunhada pela idéia de futuro (pensemos somente na filosofia da história ou no mito do progresso), enquanto a nascente pós-modernidade tem sido essencialmente “presentista”. Este fato é evidente, em particular, no que se refere às jovens gerações que, de maneira exacerbada, refutam qualquer idéia de projeto, não se preocupando pelo amanhã e empenhando-se em “repatriar o gozo”.
Se na tradição judaico-cristã o eremita só era concebível num paraíso celeste (a Cidade de Santo Agostinho) ou terrestre (a sociedade de Marx), agora é o próprio instante que se torna eterno e eternamente atual. Assistiu-se a uma mudança que faz com que a verdadeira vida não seja esperada, mas vivida, por bela ou feia que seja, aqui e agora. É preciso saber captar este imanentismo. Captá-lo e analisá-lo, porque as conseqüências de tal visão do mundo ainda nos são desconhecidas.
Em “Ícones de hoje” o senhor se refere a “mitos” e imagens capazes de provocar um “enraizamento dinâmico”...
Deveremos recordar-nos que a tradição judaico-cristã foi, em longo prazo, essencialmente iconoclasta. Precisamente porque o ícone e os ídolos não permitiam o bom funcionamento do cérebro e despertavam os sentidos. Dos profetas do Antigo Testamento ao cartesianismo típico da modernidade observamos uma condenação constante, uma estigmatização e uma marginalização das imagens. Parece-me, com efeito, que as sociedades pós-modernas estão indo, ao contrário, para uma espécie de iconofilia: publicidade, televisão, videogames... o retorno das imagens poderia multiplicar-se ao infinito. É neste sentido que falo de idolatria pós-moderna. Os ídolos (sejam eles Zidane, o Abade Pierre ou Harry Potter) são como tantos totens em torno dos quais as tribos se agregam e se compõem em função dos gostos que os constituem. Gostos sexuais, gostos musicais, gostos esportivos, gostos políticos e assim por diante. Os ícones traduzem e transportam ao presente coisas muito antigas. Este fato conduz a uma espécie de “enraizamento dinâmico”. São as raízes mitológicas muito antigas, arquetípicas, que permitem entender as formas hoje assumidas por mitos de antiqüíssima memória.
De “No vazio das aparências” a “A contemplação do mundo”, até “O reencantamento do mundo”, o senhor sempre falou de “comunitarismo” e de novas dimensões do “comum”.
Nos anos oitenta, com O tempo das tribos, direcionei a atenção para a explosão das nossas sociedades unificadas. Tudo partia da constatação de que as comunidades que haviam caracterizado sociedades antigas ou pré-modernas, encontravam hoje nova vitalidade. Eu tentava, portanto, sociologizar a questão – que esteve na base do trabalho de um historiador como Philippe Áries – da existência de sociedades espontâneas, vivazes, que representam o húmus essencial de toda a vida em sociedade. Mas, a inteligência moderna, obnubilada pelo universalismo iluminista e pelos grandes fenômenos sociais do século dezenove, constantemente recusa ou condena tal estado de coisas. Eis explicada a validez nitidamente negativa dada, em particular na França, ao termo “comunitarismo”.
Admitamos, no entanto, também a título de hipótese, que uma forma, um modo de vida em sociedade não seja forçosamente eterno. E que, mesmo que isso traga tantas coisas belas e tantas coisas boas, a República “una e indivisível” que foi um slogan do jacobinismo da modernidade deixe lugar a outra forma, a do mosaico pós-moderno. Isto significa que a “República” pode ser o ajustamento das particularidades, das especificidades locais e comunitárias. Mas, sua coerência não é a priori, mas antes a posteriori, fato que é mais difícil de pensar e gerir. Pode acontecer que – e eu o indico aqui de maneira alusiva – alguns sítios comunitários na internet, nas redes eletrônicas, corroborem semelhante asserção e nos constrinjam a repensar a estruturação da própria coisa pública. O que é público, hoje?
Da sociedade dos medos àquela dos riscos zero. A violência, fenômeno que está no centro dos seus “Ensaios sobre a violência”, cresce, todavia, no tecido coletivo e, ao mesmo tempo, é banalizada no teatro da mídia. Dir-se-ia que, enquanto sai de nível, o corpo social se imuniza da violência que abala sua vida nervosa, precisamente graças a sua espetacularização. A este propósito, o senhor fala de um “bom uso da violência”. De que coisa se trata?



Desde o século dezenove se assistiu nas sociedades européias a uma imunização da vida social. “Pasteurização” através da qual se acreditou ser possível evacuar o vírus em sua totalidade, pondo em seguro a vida social e coletiva. Os trabalhos de Foucault e de sua escola puseram a nu a lógica desta tendência que, a partir da biopolítica, culmina hoje na ideologia do risco zero. Mas, os abalos urbanos, as revoltas juvenis, as rebeliões de toda ordem e grau, o desejo de aventura estão aí a mostrar-nos que, de qualquer modo, existe um novo embrutecimento da existência. As sociedades equilibradas sempre foram aquelas que souberam integrar em seu interior a violência, fazer dela, por assim dizer, bom uso ou que, metaforicamente falando, souberam homeopatizá-la. Nos países mais civilizados a recusa da animalidade conduziu às piores bestialidades (campos de extermínio na Alemanha hitlerista, Gulag na União Soviética). Isto ocorre porque há uma defasagem muito forte entre uma vida social (em particular a juvenil) que não teme o risco e as instituições políticas, midiáticas, universitárias que sobrevivem graças ao fantasma do medo e o agitam em continuação. Podemos pensar que a sabedoria demoníaca em obra nos ‘rave’, nas reuniões esportivas, nas múltiplas efervescências do social triunfará e levará a melhor sobre o medo em ação nas instituições senis e mortíferas de um moderno que tarda em dissipar-se.

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