Pular para o conteúdo principal

Rebelião no dia das mães

Cresci com a interdição de referir o dia das mães. Era uma norma doméstica, imposta pela sabedoria de meu pai, sempre implicante contra o que considerava como “afetos vulgares do capitalismo”.

“Escolher um único dia para homenagear uma mãe é um símbolo maior da decadência ocidental”, repetia meu pai, muito incomodado e retórico, completando o raciocínio de maneira indignada: “Reduzir uma mãe a um dia, a um presente, é a pior maneira de ofendê-las! Significa reduzir a pouquíssimo a pessoa mais importante da vida de cada um. Significa reduzir as mães a uma condição simbólica apenas efemérica!”

Efetivamente, ninguém dava muita bola para as revoluções de meu pai, mas nem que fosse para termos paz, fingíamos concordar com ele, e toda a família conseguia comemorar o dia das mães sem que ele percebesse, exatamente, o que estava acontecendo.

Ah, meu pai... Suas controversas, críticas e cataclismáticas opiniões sempre foram mal-compreendidas. Mesmo por mim, tão interessado na alheia hermenêutica.

E, isto posto, recordo-me daquela vez...

Tratava-se der ser vésperas do dia das mães, creio que no ano de 1980, se bem conto, havendo em casa, conosco, um casal muito amigo e muito querido de meus pais, Valdemir Teixeira e Doristela Chermont Vidal.

Sabendo que confrontava os deuses, sussurrei à Doristela, “Pede para minha mãe ir ao quarto dela e olhar debaixo do travesseiro, depois da meia-noite”

A doce Doristela assustou-se, mas concordou comigo; e eu ainda lhe pedi,

“Não conta para o meu pai”.

E olhou-me eternecida, cúmplice, talvez sabendo de que nosso comum cristianismo era superior ao paganismo racionalista-crítico do bárbaro que era meu pai.

E assim, passada a meia-noite, nos primeiros minutos daquele domingo, dia-das-mães, Doristela, comovida, sugeriu à minha mãe que fosse a seu quarto e olhasse, como eu lhe pedira, sob seu travesseiro.

Havia lá uma rosa de papelão extremamente mal empreendida, com umas bordas patéticas de papel alumínio e uns desenhos que mais sugeriam a lepra do que o amor filial. Mas em seu apoio, não obstante, havia uma pequena carta, de minha precária autoria, na qual escrevia, se bem me lembro, afrontando as certezas de meu pai, que, mais do que apenas um dia, eram todos os dias que eram seu dia, do ponto de vista de um filho... se bem lembro.

Talvez que Valdemir e Doristela pudessem  precisar, porque não lembro bem. Lembro apenas do mote desse texto antigo “todos os dias, e não um dia apenas”.

E lembro da emoção da Doristela, que entendeu minhas palavras como se eu fosse um cruzado contra o pagão infeliz que era meu pai.

Minha mãe, que sempre se divertia ao confrontar meu pai desses seus princípios que ela sabia escusos, leu para os presentes minha pequena carta, falando que todos os dias eram seus, e não apenas um,

“O que me dizes?”, perguntou ela a meu pai, com aquele riso de sua alma, aquele riso que sabia que falas não convolam mentes.

E meu pai comoveu-se. Permaneceu calado por uns quinze minutos, com o olhar afundado no seu copo de whisky, tal como ocorria toda vez que desejava sugerir que estava afetado por alguma inesperada comoção.

(Ah, meu pai...)

E então Doristela fustigou-lhe,

“Teu filho te superou, Luiz, vivi para ver isto!”,

Doristela muito querida! Naquela noite ela partilhou comigo uma espécie de rebelião contra meu pai. Todos eles eram amigos de adolescência, e creio que havia anos que meu pai a irritava, bem como ao sempre cavalheiro Valdemir, com suas insubordinações em relação às convencionalidades dos afetos costumeiros.

Todos sabíamos, naquele tempo, que meu pai era um terrível pagão, constando como evidência de seu paganismo sua irridência contra os costumes capistalistas e midiáticos de nosso tempo, mas todos o amávamos e rezávamos por sua pobre alma.

Recordo que recebi imensos beijos de minha mãe e sua amiga Doristela apertou minha mão, como se fosse minha cúmplice – além de dizer que meu texto estava lindo e que desejava, um dia, que um filho seu lhe ecrevesse algo semelhante.

Fábio Fonseca de Castro.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Eleições para a reitoria da UFPA continuam muito mal

O Conselho Universitário (Consun) da UFPA foi repentinamente convocado, ontem, para uma reunião extraordinária que tem por objetivo discutir o processo eleitoral da sucessão do Prof. Carlos Maneschy na Reitoria. Todos sabemos que a razão disso é a renúncia do Reitor para disputar um cargo público – motivo legítimo, sem dúvida alguma, mas que lança a UFPA num momento de turbulência em ano que já está exaustivo em função dos semestres acumulados pela greve. Acho muito interessante quando a universidade fornece quadros para a política. Há experiências boas e más nesse sentido, mas de qualquer forma isso é muito importante e saudável. Penso, igualmente, que o Prof. Maneschy tem condições muito boas para realizar uma disputa de alto nível e, sendo eleito, ser um excelente prefeito ou parlamentar – não estou ainda bem informado a respeito de qual cargo pretende disputar. Não obstante, em minha compreensão, não é correto submeter a agenda da UFPA à agenda de um projeto específico. A de...

Solicitei meu descredenciamento do Ppgcom

Tomei ontem, junto com a professora Alda Costa, uma decisão difícil, mas necessária: solicitar nosso descredenciamento do Programa de pós-graduação em comunicação da UFPA. Há coisas que não são negociáveis, em nome do bom senso, do respeito e da ética. Para usar a expressão de Kant, tenho meus "imperativos categóricos". Não negocio com o absurdo. Reproduzo abaixo, para quem quiser ler o documento em que exponho minhas razões: Utilizamo-nos deste para informar, ao colegiado do Ppgcom, que declinamos da nossa eleição para coordená-lo. Ato contínuo, solicitamos nosso imediato descredenciamento do programa.     Se aceitamos ocupar a coordenação do programa foi para criar uma alternativa ao autoritarismo do projeto que lá está. Oferecemos nosso nome para coordená-lo com o objetivo de reverter a situação de hostilidade em relação à Faculdade de Comunicação e para estabelecer patamares de cooperação, por meio de trabalhos integrados, em grupos e projetos de pesquisa, capazes de...

Artimanhas de uma cassação política: toda solidaridade a Cláudio Puty

Pensem na seguinte situação:  1 - Alguém, no telefone, pede dinheiro em troca da liberacão de licenças ambientais. 2 - Essa pessoa cita seu nome. 3 - A conversa é interceptada pela Polícia Federal, que investigava denúncias de tráfico de influência. 4 - No relatório da Polícia Federal, você nem chega a ser denunciado; é apenas um nome, dentre dezenas de outros, inclusive de vários parlamentares. 5 - Mesmo assim resolvem denunciar você por corrupção ativa. 6 - Seu sigilo telefônico é quebrado, sua vida é revirada. Nada é encontrado. Nada liga você àquela pessoa que estava pedindo dinheiro. 7 - Mesmo assim, você é considerado culpado. 8 - Os parlamentares, igualmente apenas citados, como você, são inocentados. Mas você, só você, pelo fato de ter seu nome citado por um corrupto, você é considerado culpado. É isso que acabou de acontecer com o deputado federal pelo PT do Pará Cláudio Puty. Ele vai entrar com um recurso junto ao Tribunal Sup...