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Heranças à Esquerda 26

O marxismo ocidental 9: Michel Foucault

A herança que Michel Foucault lega à esquerda é um instrumental corrosivo com o qual se pode desmontar as segundas e terceiras intenções dos homens, grupos, classes e, mais que isso, talvez: também as intenções inconscientes de todos esses agentes. 


Tudo no mundo, segundo Foucault, é uma relação intrincada de poder. Sobretudo o saber, ou seja, o conjunto de falas, enunciadas ou não - não importa - evidentes ou não, mais fechadas ou mais abertas, que atravessam as relações sociais.

Em Foucault, o poder é a relação que controla e domina. Uma relação nem sempre funcional, clara ou consciente. Mas, em todo caso, o poder de impor a verdade. E também a realidade. Conquistar a subjetividade do sujeito, é esse o verdadeiro jogo do poder. O poder é a capacidade de comunicar a sua verdade, pois, como disse Nietszche, não há acontecimentos, há apenas interpretações.

E por que isso é uma herança à esquerda? Porque a esquerda é denúncia, é desvelamento, é desconstrução. Esse é o espírito da esquerda, a essência da esquerda. E aí reside a herança de Foucault. Na primeira parte da sua obra, durante os anos 1960, ele produz uma arqueologia de algumas das grandes formações discursivas do ocidente, como a loucura, a clínica e o significado das palavras que, metodologicamente falando, acabam por constituir esse instrumental corrosivo. Lá onde tudo eram pontos pacíficos, coisas tidas como certas, para lá Foucault volta-se e, como se o seu olhar fossem faróis e como se as coisas fossem sombras, lá o mundo começa a se desfazer. Arqueologia é escavar as sucessivas camadas de significados e ver como eles somam-se, simplesmente, para dissimular um embate de poder.

Numa segunda parte, ao longo dos anos 70, esse procedimento arqueológico foi substituído, ou melhor, acrescido, de uma prática que ele próprio chamou de genealógica. Tratava-se de relacionar os significados entre si, indagando sobre as relações de poder que se formam com as suas assimetrias. E, indo além, perceber como essas relações de poder abrem fissuras, microespaços, bioespaços, que se vão transformando em micropolíticas, em biopoderes... noções refinadas, que permitem o aparecimento de novas estratégias críticas, que permitem toda a reflexão pós-moderna, que permitem que muitos dos mitos da esquerda também sejam questionados, derrotados, superados...

A herança de Foucault renova a esquerda não apenas porque consiste num instrumental de denúncia da eterna dissimulação do poder mas, também, porque permite um instrumental novo para a autocrítica do poder que a própria esquerda deseja, simula e, ela também, nós também, dissimula, dissimulamos.

Comentários

Anonymous disse…
Essa teoria de que tudo é uma relação intrincada de poder se aplica tb às relações afetivas? E de que maneira?
Paulão disse…
Lembro de uma aula que tu deste sobre Foucault, acho que foi um seminário na especialização Imagem e Sociedade. Foi sobre o tema do sujeito, o cuidar de si, etc. Aí tu falaste sobre um livro com vários textos do Foucault sobre o tema do sujeito, um livro que tinha sido lançado a pouco tempo. Podes me dizer o nome desse livro? Grande abraço, Fábio.
Fala Paulão! Blza? O livro é "Hermenêuticas do Sujeito". É uma coletânea de anotações de cursos, resumos de aulas, planos de fala e textos diversos. O sujeito é um dos grandes temas de Foucault. Mas não o sujeito transcendental, e sim o sujeito que se forma "classicamente", após as diatribes de Descartes, as revoltas de Espinoza e as visagens de Leibnitz. É esse sujeito que Foucault desvela e ajuda a condenar à morte. O cuidado de si (souci de soi) é sua marca. Me lembro dessa aula, mas foi no mestrado de psicologia, falei sobre a distância entre o cuidado de si e as práticas de risco da cultura contemporânea, tipo sexo sem proteção, "pega" de carro, etc. Abraço.

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