Pular para o conteúdo principal

Heranças à Esquerda 27


O marxismo ocidental 10: Gilles Deleuze



Uma vez perguntaram a Gilles Deleuze o que era ser “de esquerda”. Sua resposta foi a seguinte: “Ser de esquerda é perceber o mundo antes de tudo”. Ou seja perceber na seguinte ordem: mundo, continentes, américa, amazônia, pará, belém, eu. Alguém de direita faria o caminho inverso.
Isso representa uma certa ética: a de subjugar o individual em favor do coletivo. E isso é essencial em Deleuze e é o que faz da sua obra uma herança à esquerda.
Vejamo-la, no entanto, sob a ótica conceitual com que se apresenta na sua obra: por meio dessa palavra tortuosa e plena de alegria que é desejo. Aliás, antes lembremos que a enciclopédia Larousse define Deleuze como “o filósofo do desejo”.
Mas... em que sentido, propriamente?
No sentido de que Desejo, em Deleuze, equivale a uma busca pela liberdade através da conexão ao coletivo: “Desejo é construir um conjunto, um agenciamento, uma região; sempre um coletivo”.
Sim, devem estar pensando: o pensamento dele tem algo de espinoziano... Sim, é verdade. A comunhão ao universal é o tema de Espinoza por excelência e a temática do desejo não lhe é estranha, apesar de surgir na sua filosofia sob diferentes mantos. E Deleuze amava Espinoza. Aliás, dele provém a noção deleuziana de alegria. E isso, na verdade, penso eu, daria a Deleuze melhor síntese: “o filósofo da alegria”.
Porém, como não se trata de escrever sobre Deleuze, mas sim sobre o que, em Deleuze, se torna uma herança à esquerda, o tema preciso é, de fato, o tema do desejo, que para ele não é algo compreendido para bem além das amarras psicanalíticas tradicionais, que percebem o desejo como algo circunscrito às esferas da família e do sexo. É algo presente na pulsão gregária, essencial ao corpo social.
Em “O Anti-Édipo”, obra de 1972, o desejo já é descrito como uma forma política, uma forma de negociação do coletivo. Na quarta parte desse livro Deleuze se propõe a fazer uma esquizo-análise do papel do desejo. Trata-se de ver como o desejo constitui uma estratégia de conexão e produção do papel social dos indivíduos. Nas obras posteriores, a esquizo-análise surgirá com outros nomes. O mais interessante deles é micro-política. Trata-se de um termo inspirado de seu diálogo com a obra do amigo Michel Foucault, onde se encontra a bio-política, também, como um elemento inspirado do produtivo diálogo com o amigo ...Deleuze.
A micro-política é a estratégia de desejar caoticamente e, por meio de todos os modos, produzir compensações, derivações, processos. Tudo fica mais claro por meio da noção de rizoma, que Deleuze constrói em parceria com Félix Guattari, parceiro em muitas obras. Rizoma é o tecido intrincado e imbricado das plantas, que se conecta em todas as direções, e isso é o desejo: o coletivo comum, a interconexão.
A micro-política, de certa forma, vem a ser o oposto da política, ou do que a política, em geral, se tornou. A política do mundo público já não é conexão. É um fibroma. Já não integra, mas afasta.
A micro-política, no entanto, não é a política. Ela é uma ética.
Isso me diz muito. Deleuze me diz muito.
Ler Deleuze me convence de que posso fazer muito mais e muito melhor recorrendo à micro-política que à política.

Toda terça-feira tem Heranças à Esquerda no Hupomnemata 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Solicitei meu descredenciamento do Ppgcom

Tomei ontem, junto com a professora Alda Costa, uma decisão difícil, mas necessária: solicitar nosso descredenciamento do Programa de pós-graduação em comunicação da UFPA. Há coisas que não são negociáveis, em nome do bom senso, do respeito e da ética. Para usar a expressão de Kant, tenho meus "imperativos categóricos". Não negocio com o absurdo. Reproduzo abaixo, para quem quiser ler o documento em que exponho minhas razões: Utilizamo-nos deste para informar, ao colegiado do Ppgcom, que declinamos da nossa eleição para coordená-lo. Ato contínuo, solicitamos nosso imediato descredenciamento do programa.     Se aceitamos ocupar a coordenação do programa foi para criar uma alternativa ao autoritarismo do projeto que lá está. Oferecemos nosso nome para coordená-lo com o objetivo de reverter a situação de hostilidade em relação à Faculdade de Comunicação e para estabelecer patamares de cooperação, por meio de trabalhos integrados, em grupos e projetos de pesquisa, capazes de...

Eleições para a reitoria da UFPA continuam muito mal

O Conselho Universitário (Consun) da UFPA foi repentinamente convocado, ontem, para uma reunião extraordinária que tem por objetivo discutir o processo eleitoral da sucessão do Prof. Carlos Maneschy na Reitoria. Todos sabemos que a razão disso é a renúncia do Reitor para disputar um cargo público – motivo legítimo, sem dúvida alguma, mas que lança a UFPA num momento de turbulência em ano que já está exaustivo em função dos semestres acumulados pela greve. Acho muito interessante quando a universidade fornece quadros para a política. Há experiências boas e más nesse sentido, mas de qualquer forma isso é muito importante e saudável. Penso, igualmente, que o Prof. Maneschy tem condições muito boas para realizar uma disputa de alto nível e, sendo eleito, ser um excelente prefeito ou parlamentar – não estou ainda bem informado a respeito de qual cargo pretende disputar. Não obstante, em minha compreensão, não é correto submeter a agenda da UFPA à agenda de um projeto específico. A de...

Comentário sobre o Ministério das Relações Exteriores do governo Lula

Já se sabe que o retorno de Lula à chefia do Estado brasileiro constitui um evento maior do cenário global. E não apenas porque significa a implosão da política externa criminosa, perigosa e constrangedora de Bolsonaro. Também porque significa o retorno de um player maior no mundo multilateral. O papel de Lula e de sua diplomacia são reconhecidos globalmente e, como se sabe, eles projetam o Brasil como um país central na geopolítica mundial, notadamente em torno da construção de um Estado-agente de negociação, capaz de mediar conflitos potenciais e de construir cenas de pragmatismo que interrompem escaladas geopolíticas perigosas.  Esse papel é bem reconhecido internacionalmente e é por isso que foi muito significativa a presença, na posse de Lula, de um número de representantes oficiais estrangeiros quatro vezes superior àquele havido na posse de seu antecessor.  Lembremos, por exemplo, da capa e da reportagem de 14 páginas publicados pela revista britânica The Economist , em...