Trecho de uma entrevista que meu ex-professor, na UnB, Jessé de Souza, concedeu ao portal IHU On-Line. A entrevista versa sobre a "nova classe média brasileira", tema que Jessé discute em dois livros: "A Ralé Brasileira: quem é e como vive" (Rio de Janeiro: Record, 2009) e "Os batalhadores brasileiros" (Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2009).
IHU On-Line – Como se define uma classe social? Como se deu a construção das classes sociais no Brasil contemporâneo?
Jessé de Souza – O mecanismo complexo que explica a existência das classes sociais é o segredo mais bem guardado de todas as sociedades modernas. É que o pertencimento de classe define, em grande medida, o acesso privilegiado a qualquer tipo de bem ou recurso escasso. Esses bens e recursos que não precisam ser materiais como um carro ou uma casa, mas também podem ser, por exemplo, o tipo de mulher ou de homem que se consegue ter ou o tipo de reconhecimento social ou prestígio que se desfruta em todas as dimensões da vida. Tudo isso é definido, com alta probabilidade pelo menos e na imensa maioria dos casos, pela herança de classe – pela presença ou ausência relativa de capital cultural e capital econômico – onde se é socializado.
O tema da classe desafia, portanto, a ilusão social mais forte entre nós que é a da autonomia ou a liberdade do sujeito individual que é, por sua vez, o fundamento da “meritocracia” moderna, o que Pierre Bourdieu mostrou melhor do que qualquer outro. A classe permite a construção diferencial dos indivíduos pelas heranças típicas de cada classe quebrando a ilusão do “homem universal”, como se os pressupostos para a competição social por recursos escassos fossem os mesmos para todos.
Por conta disso, os interesses da reprodução de todo tipo de privilégio precisa ou tornar inofensivo ou ridicularizar o conceito de classe. Torna-se o conceito de classe inofensivo quando se liga, por exemplo, pertencimento de classe à renda, o que vemos acontecer em todos os jornais, em todos os debates acadêmico e público brasileiros. Como toda “ilusão objetiva” moderna, ela é mais uma “meia verdade” do que uma mentira. Afinal, existe algum padrão diferencial de renda entre as diversas classes, embora de modo algum em todos os casos. O que essa associação arbitrária esconde é o todo processo de gênese das classes e de seu processo de reprodução que a permite continuar no tempo, ou seja, permite esconder e desviar o foco sobre o que realmente interessa e que é importante de se conhecer. A ridicularização é lograda pela associação de qualquer conceito não liberal de classe ao marxismo tradicional. Toda vez que o conceito de classe surge na esfera pública, ele é contaminado e tornado inócuo por essas duas operações que são duas faces de uma mesma moeda.
Na verdade, a classe social se forma pela herança afetiva e emocional, passada de pais para filhos no interior dos lares, de modo muitas vezes implícito, não consciente e inarticulado. São esses estímulos que irão construir formas específicas de agir, reagir, refletir, perceber e se comportar no mundo. E é precisamente a presença ou falta de certos estímulos, por exemplo, estímulos para a disciplina, para o autocontrole, para o pensamento prospectivo, para a concentração, que irá definir as classes vencedoras e perdedoras antes mesmo do jogo da competição social se iniciar de forma mais explícita. Existem classes sociais com dificuldades de concentração, por falta de exemplos e estímulos à leitura e a imaginação, que já chegam “derrotadas” na escola e depois, com mais razão ainda, no mercado de trabalho. Existem classes literalmente “sem futuro” porque jamais se pensa nele tamanha a urgência da sobrevivência no presente. Nas classes médias, por exemplo, ao contrário, o futuro é mais importante que o presente o que permite que se tenha futuro. Essa fabricação social de indivíduos com capacidades diferenciais por pertencimento de classe tem que ser cuidadosamente escondida. Daí que se fale apenas no seu “resultado” mais visível, a renda, de modo a que possa se “falar de classe” sem que nada se compreenda de sua dinâmica.
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