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Quem é a nova classe média brasileira?

Mais duas questões colocadas a Jessé de Souza, a respeito da formação social brasileira atual:

IHU On-Line – Como o senhor define esse estrato social brasileiro que está emergindo economicamente? Qual é o seu perfil?

Jessé de Souza – É sempre difícil definir um fenômeno social que está se constituindo “em ato” defronte de nossos olhos. Esse foi, inclusive, o maior desafio tanto teórico quanto empírico do livro que fizemos. No decorrer do trabalho com as entrevistas, percebemos se tratar de fenômeno distinto do que o anunciado com certo triunfalismo nos jornais. Procuramos primeiro separar este estrato da classe média estabelecida. Não se consegue fazer isso apenas com a variável renda, que é, no entanto, infelizmente, o que se faz sempre. A classe média estabelecida é uma classe dominante porque se forma pela apropriação privilegiada de capital cultural, seja técnico e especializado, seja literário e especulativo, o qual é indispensável para o funcionamento do mercado e do Estado. Ainda que não exista acesso privilegiado a volume significativo de capital econômico, como nas classes altas, o acesso a este conhecimento altamente valorizado socialmente cria toda uma “condução da vida” em todas as dimensões que permite, quase sempre, manter o privilégio para as gerações seguintes.

Não é isso que acontece com os “batalhadores” que analisamos. O acesso aos capitais impessoais, que são a base de todo privilégio social – tanto material quanto simbólico –, e aos capitais econômico e cultural é restrito e limitado. São pessoas que fizeram escola pública ou universidade particular (no melhor dos casos) tendo de trabalhar paralelamente muitas vezes em mais de um emprego. Muitos trabalham entre 10 e 14 horas por dia e não possuem o recurso mais típico das classes do privilégio que é o “tempo” para incorporação de conhecimento valorizado e altamente concorrido. Essas características estruturais implicam em “condução de vida” e “percepção do mundo” – as duas características mais importantes para conhecermos a especificidade do pertencimento de classe – muito distintas das classes médias estabelecidas entre nós.

IHU On-Line – Qual é a chance de participação política, econômica e social desse novo estrato social que emerge no país? Quais os lados positivos e negativos do surgimento desse novo estrato social?

Jessé de Souza – Esse estrato social é o grande responsável pelo extraordinário desenvolvimento econômico brasileiro dos últimos anos que se deu, fundamentalmente, pela perspectiva do mercado interno. Foi esse estrato que dinamizou a economia brasileira na última década e estimulou o mercado de consumo de bens duráveis antes de impossível acesso a grandes parcelas da população. Especialmente no Nordeste, a região mais dinâmica e de grande número de “batalhadores” nesta última década, foi o Bolsa Família, no testemunho de inúmeros de nossos informantes, o que ajudou a irrigar com alguma economia monetária rincões secularmente esquecidos entre nós. A nova demanda criada foi um dos elementos que permitiu surgir uma classe de pequenos empreendedores no interior do Nordeste, vários dos quais compondo a assim chamada “nova classe média". Politicamente, é difícil antecipar o comportamento ou nomear uma perspectiva particular até porque essa classe não é homogênea.

Ela parece reunir elementos tanto de uma classe trabalhadora “pós-fordista”, ou seja, superexplorada, sem tradição de solidariedade de classe e se acreditando empresários de si mesmos, com elementos de uma pequena burguesia tradicional, no sentido de empreender pequenos negócios muitas vezes sem pagar impostos ou direitos trabalhistas. A meu ver essa classe vai ser o fiel da balança do caminho tanto social quanto político que o Brasil irá tomar nos próximos anos. Ela tanto pode tender para um alinhamento com os setores mais conservadores de um liberalismo sem responsabilidade social – perspectiva hoje hegemônica na nossa esfera pública ainda que fora do poder político – ou, ao contrário, ser a ponta de lança de um projeto efetivamente mais inclusivo socialmente que jamais teve uma chance real entre nós. As classes sociais não são nem libertárias nem conservadoras em si. É a luta política que implica convencimento e voz ativa na esfera pública que decide, em cada caso, que tipo de orientação política vai prevalecer.

Comentários

Zé Gondim disse…
Simples, sucinto e real... Excelente entrevista. Vale destacar o trecho: "As classes sociais não são nem libertárias nem conservadoras, em si. É a luta política que implica convencimento e voz ativa na esfera pública que decide de tipo de orientação política vai prevalecer." Nota 10 pro prof. Jessé. Um abraço,
Zé Gondim

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