O marxismo ocidental 4: Herbert Marcuse
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Marcuse escreveu um livro pelo qual não é lembrado. Tenho a edição em inglês: “Heideggerian Marxism”, organizado postumamente por Richard Wolin e John Abromeit, com autorização do herdeiro dos Fundos Marcuse, Peter Marcuse e editado em 2005 pela Universidade de Nebraska. Trata-se de uma obra-prima esquecida, na qual, com intangível força intelectual, se encontram duas das principais correntes de pensamento do mundo contemporâneo: o marxismo e a fenomenologia. O insólito encontro tornou-o um livro esquecido, porque o mundo ainda não explica, tolera ou pode compreender encontros tais.
Mas tais encontros existem. Para Marcuse, Heidegger vai ao centro da questão materialista quando diz que a filosofia é uma “ciência prática”, porque o centro da sua função é indagar sobre a concretude da existência humana. Ademais, do ponto de vista do debate sobre a luta de classes, não há como deixar de ver, na obra de Heidegger, embora isso nunca seja muito abordado, a chave para compreender as limitações da experiência burguesa – ou melhor, a limitação idealista da angústia burguesa, esse Innerlichkeit, ou, em inglês, inwardness, que, aliás, tematizei no meu trabalho sobre o imaginário da burguesia belemense, ao longo do século XX, a respeito do ciclo do látex (“A Cidade Sebastiana. Era da Borracha, memória e melancolia numa capital da periferia da modernidade”, a qual espero poder editar muito em breve).
Tais encontros existem e formam nossas heranças à esquerda. E embora Heidegger não tenha sido um autor à esquerda, ao menos como se concebe sua obra, Marcuse foi capaz de desbravá-la e de pavimentar seus campos, compreendendo-a no centro de um debate que surge após a Primeira Guerra e que porta sobre a existência e a possibilidade de compreendê-la como um limite do homem – ou melhor, do humano.
Lembremos que, na tradição marxista, “História e Consciência de Classe”, de Lukács, bem como “Marxismo e Filosofia”, de Karl Korsch, apareceram, ambos, em 1923 e que, na tradição fenomenológica, “Ser e Tempo”, de Martin Heidgger, surgiu em 1927. Todas essas obras estão no centro do debate essencial do século XX e que diz respeito à humanidade do homem. Um debate essencial nas duas tradições citadas mas, muito especificamente, na fenomenologia ontológica, de Heidegger, como no marxismo ocidental, que tem em Marcuse um de seus representantes mais criativos.
Pois, ao contrário de seus companheiros frankfurtianos, Adorno e Horkheimer, Marcuse se caracterizou pela extrema receptividade e abertura para o contemporâneo, para o novo e o diferente, que o elitista Adorno e o ranzinza Hokheimer não podiam admitir. Por que Marcuse e não os demais¿ Porque Marcuse, impressionado com “Ser e Tempo”, produziu uma tese sob orientação de Heidegger... Não, não apenas isso, pois seria muito simplório. Há algo mais a fundo. Creio que, provavelmente, essa coisa mais a fundo é o fato de que a leitura que Marcuse fez de Dilthey ter sido muito, muito mais sensível que a leitura de Dilthey feita por Horkheimer e Adorno.
O mesmo gênero de fenômeno que pode ser observado a respeito de Walter Benjamin. As pessoas que leram Dilthey e, depois, leram Heidegger, especificamente Ser e Tempo, compreenderam mais a fundo que as outras a noção de Erlebniss, ou seja, a experiência viva, a experiência vivida.
Certamente que há uma diferença aí, a qual pode ser sintetizada no fato de que se, para Dilthey, a historicidade estava na história, para Heidegger e, posteriormente, para Marcuse e Benjamin, a existência é, ela própria, histórica. Essa noção substancializa a maneira como Heidegger emprega a palavra Zunkunftigkeit, ou seja, futuridade: a idéia de que um plano de futuro, um plano para o futuro, está presente no presente, na maneia como nós realizamos o nosso presente. Lembremos que, para Heidegger, a noção de história, Geschichte, significa acontecimento (Geschehen), algo desprovido de dimensão fática, presente na noção de futuridade.
Algo que soará a Marcuse como um ímpeto revolucionário. Algo que também estará presente em Benjamin, na sua noção de Jetztzeit.
Para Marcuse, duas das categorias heideggerianas presentes no método da “analítica existencial”, “temporalidade” e “historicidade”, são noções que servem a uma poderosa crítica dos processos de reificação. Marcuse proclamará isso sem nenhum pudor. Um passo decisivo para o marxismo ocidental e uma herança à esquerda a reivindicar e a reinventar.
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