Pular para o conteúdo principal

A montagem de Romeo e Julieta no Festival de Ópera

Ontem assisti à montagem de Romeu e Julieta, de Gounod, no Festival de Ópera de Belém. Não sou especialista no assunto e gosto de música lírica com entusiasmo moderado. Porém, gostaria de deixar minhas impressões sobre a montagem. Em primeiro lugar, notar que o festival, neste ano de vacas magérrimas, deve muito à capacidade de arrojo de sua equipe técnica. Parece-me que mais foi feito aqui, este ano, do que nos anos anteriores, e isso é uma conquista para todos. O caminho, já sabemos, é esse mesmo: fazer o máximo possível em Belém, valorizando ao máximo possível os talentos locais, trazendo cantores de fora de forma a permitir uma interação produtiva com eles, uma experiência didática ou turmas de master class, mas não mais trazê-los por traze-los, sem que eles deitem aqui experiência. E isso vale também para as outras áreas da montagem, da cenografia à iluminação. Algumas outras observações pontuais, positivas e negativas:

Pontos negativos:

1. Apesar de ter contado com orientação de uma academia de esgrima, as cenas de lutas com os floretes foram sofríveis, sobretudo a cena do Prólogo. Faltou marcação e, digamos, “alhure”; faltou postura e contenda. Espadas baixas e cabeças baixas davam impressão de que os lutadores estavam futricando um formigueiro com a ponta de suas espadas, e não lutando. O Mercutio em combate foi particularmente fraco. Poderiam ter treinado mais, ou contar com uma direção mais crítica nesse aspecto. Em último caso, poderiam ter visto uns filmes de capa e espada, ao menos, para se inspirar.

2. A pronúncia em francês do Romeo foi muito, muito ruim. Atrapalhou a compreensão da música e a harmonia de seus duetos. Fez cacofonia. Todos os “au”, “eu” e “eux” eram convertidos, automaticamente, em “é”, numa simplificação que soava grotesca e empobrecia a marcação da música. Da mesma forma, seus –r puxavam ao gutural, numa simplificação tão rígida que perdia toda a riqueza de variação de frases do libreto. Já ouvi falar num “francês de ópera” – de resto o praticado pelo restante do elenco – que valoriza a vibração dos –r, mas nunca ouvi falar em tal guturalização do francês.

3. O Mercutio que puseram no palco, verdadeiro personagem principal da história, estava péssimo. Não parecia Mercutio. Deixou de lado o comportamento galante, provocador, irônico, corajoso e destemido que caracteriza o personagem por gestos tímidos, recuados e desajeitados. Mercutio foi o grande ausente da montagem. Bastava mais arrojo e a montagem ganharia muito. Isso ocorre porque Mercutio é um tipo de personagem central nas obras de Shakespeare, é o personagem “suporting”, aquele que levanta o roteiro, que faz a trama caminhar, que demanda aos “personagens principais” que dêem mais de si. É um truque shakespeariano: Shakes divide a alma do personagem central em duas e dá a metade mais provocadora ao “suporting”. Mercutio é o alter ego de Romeo da mesma forma que Lady Macbeth o é de Macbeth, que Ofélia o é de Hamlet, que Falstaff – bem, eu diria, esse aí para o próprio Shakes. E o que tivemos no palco ontem? Um Mercutio mal ajambrado, comido, cenicamente inexpressivo. Sem presença de palco, com marcações exíguas, curtas. Isso me admira muito porque o intérprete, Amadeu Góis é, de longe, o cantor mais experiente da montagem, e já teve primeiros papéis aos montes, e muitos deles bem difíceis, como Figaro e o Marcelo de La Bohème.

4. Por fim, só para lembrar que programas do nosso festival sempre são muito ruins. Bastava uma pequena revisão para evitar que o Conde Páris fosse transformado em Conde de Paris e outras coisas do gênero.

Pontos positivos

1. Isabelle Sabrié foi magnífica. A prova cabal foi a ária “Je veux vivre dans le rêve”, logo no I ato. A famosa “valsa de Julieta”, desafio para qualquer uma, recebeu um tratamento doce, que estabeleceu o padrão de uma Julieta meiga como diz o enredo – um personagem que vai da inocência total que a música designa ao trágico dominante na cena do punhal. Estive vendo hoje cedo no Youtube outras interpretações para essa ária e deu para perceber que há um padrão um tanto menos doce na sua construção. Acho que um padrão lançado por Geraldine Farrar, na montagem de 1911, o qual deve ter ficado referencial para o personagem e que chega até a póp-era-star Sumi Jo, por exemplo.

2. A cenografia foi genial, muito simples, mas bem ajambrada. Muito conhecedora do recurso da profundidade de palco, fez bom uso dos recursos do teatro. Era perceptível a limitação financeira, mas aí vem a genialidade da coisa, a capacidade de dar solução. Destaque, nesse sentido, para o cenário do IV ato, o quarto de Julieta, que brincou com a porta (do balcão), a lareira e a cama de maneira lúdica. Detalhes interessantes, também, o Cristo bizantino na capela dos Capuleto, uma referência erudita à presença do Império Bizantino em Ravena, cidade com preponderância sobre Verona e, ainda, para a cena II do ato III, que reconstituiu a luminosidade penisular e soube dar perspectiva e grandeza ao ponto culminante da ópera.

Uma observação neutra

Apesar do problema com o francês mencionado acima, Attala Ayan foi bom. Quem o viu surgir no Festival de Canto de 2007 sentiu que seu trunfo é a ousadia, a coragem arrebatada, a alegria de viver. Esses aspectos retornaram em pontos da montagem de ontem e assinalam que isso deve ser explorado em seus papéis futuros. O problema foi a complexidade do papel, que fez esses bons momentos se alternarem com outros momentos, banais, e que, nessa alteração víssemos pouca continuidade. Acho que faltou mais Romeu e menos Attala para Attala sobressaísse mais.

Comentários

Luiz Carlos disse…
Bom te ver, com a família, no teatro. Gostei bastante da montagem de Romeu e Julieta, que acompanhei nos bastidores ainda, para uma cobertura basicamente institucional. Ficam mesmo claros o esforço da equipa para fazer a ópera existir e os talentos individuais que, juntos, dão o resultado que vimos. Isabelle está excelente. Como não entendo de esgrima - e tenho uma espécie de aversão inconsciente a atividades físicas -, vi aquilo quase de maneira neutra, embora adore os filmes de capa e espada de outrora. Enfim, gosto de saber que somos ousados a ponto de fazer uma ópera em um ano em que até o cinema americano enfrentou greves e cortes. Abraço.
Anônimo disse…
Crítica rara, como não se vê em Nova Deli.
Anônimo disse…
acho que o ballet na ópera ficou a desejar, faltou técnica aos bailarinos, uma pena. a política de cultura do governo continua falhando ao selecionar sempre a mesma escola de dança para as montagens, isso nãoé de agora - será que a escola será novamente chamada para a outras montagens e será que os organizadores do evento não sabem que há outras escolas na capital??? não é tão difícil abrir um edital selecionando os melhores bailarinos e um coreógrafo competente para dirigi-los. bailarinos precisam de cachê e de espaço para mostrar sua arte.

Postagens mais visitadas deste blog

Eleições para a reitoria da UFPA continuam muito mal

O Conselho Universitário (Consun) da UFPA foi repentinamente convocado, ontem, para uma reunião extraordinária que tem por objetivo discutir o processo eleitoral da sucessão do Prof. Carlos Maneschy na Reitoria. Todos sabemos que a razão disso é a renúncia do Reitor para disputar um cargo público – motivo legítimo, sem dúvida alguma, mas que lança a UFPA num momento de turbulência em ano que já está exaustivo em função dos semestres acumulados pela greve. Acho muito interessante quando a universidade fornece quadros para a política. Há experiências boas e más nesse sentido, mas de qualquer forma isso é muito importante e saudável. Penso, igualmente, que o Prof. Maneschy tem condições muito boas para realizar uma disputa de alto nível e, sendo eleito, ser um excelente prefeito ou parlamentar – não estou ainda bem informado a respeito de qual cargo pretende disputar. Não obstante, em minha compreensão, não é correto submeter a agenda da UFPA à agenda de um projeto específico. A de

Leilão de Belo Monte adiado

No Valor Econômico de hoje, Márcio Zimmermann, secretário-executivo do Ministério de Minas e Energia, informa que o leilão das obras de Belo Monte, inicialmente previsto para 21 de dezembro, será adiado para o começo de 2010. A razão seria a demora na licença prévia, conferida pelo Ibama. Belo monte vai gerar 11,2 mil megawatts (MW) e começa a funcionar, parcialmente, em 2014.

Ariano Suassuna e os computadores

“ Dizem que eu não gosto de computadores. Eu digo que eles é que não gostam de mim. Querem ver? Fui escrever meu nome completo: Ariano Vilar Suassuna. O computador tem uma espécie de sistema que rejeita as palavras quando acha que elas estão erradas e sugere o que, no entender dele, computador, seria o certo   Pois bem, quando escrevi Ariano, ele aceitou normalmente. Quando eu escrevi Vilar, ele rejeitou e sugeriu que fosse substituída por Vilão. E quando eu escrevi Suassuna, não sei se pela quantidade de “s”, o computador rejeitou e substituiu por “Assassino”. Então, vejam, não sou eu que não gosto de computadores, eles é que não gostam de mim. ”