O professor Giuseppe Cocco disse tudo - a respeito da péssima gestão atual do Ministério da Cultura - nesse artigo.
A crise do MinC no governo Dilma: levar a sério a questão do valor
Por Giuseppe Cocco, na revista Global Brasil
A restauração reacionária no Ministério da Cultura – MinC – do governo Dilma já foi amplamente comentada e o volume de críticas só faz crescer, sem determinar nenhum efeito nessa gestão desastrada, nem na postura do governo Dilma. Como foi possível essa virada tão inesperada? Podemos supor várias explicações: o lobby da indústria cultural “nacional” (que estava presente no evento da “cultura” em apoio à candidata depois do primeiro turno, no Teatro Oi-Casa Grande do Rio de Janeiro); alguns acordos internacionais sobre “propriedade intelectual”, eventualmente embutidos nos mega-eventos que o Brasil vai abrigar (a Copa Mundial de Futebol e as Olimpíadas em particular); o acaso da escolha da pessoa da Ministra por critérios de gênero e … sobrenome.
Cada uma dessas explicações é, infelizmente, plausível e lastimável. Ao mesmo tempo, nenhuma delas é fundamental. Há uma outra, essa sim fundamental: trata-se da indigência teórica e política do governo Dilma, do PT e de seus intelectuais residuais.
Narciso no poder
Narciso no poder
É preciso ver que a entrega do MinC de volta à elite da cultura (aos medalhões da improvável “classe artística”) e da indústria cultural “nacional” foi fruto de um encontro político e oportunista entre o lobby dos “donos” da intermediação cultural e setores do governo e do PT, alguns desses definitivamente perdidos na lógica dos cargos e outros que pensam a cultura como “indústria” e a esquerda como “nacional”.
Os primeiros atrelaram o bonde de seus interesses reacionários a mais recente “idéia fora do lugar”, ou seja, a balela (velha de mais de duas décadas e imaginada na Inglaterra de Tony Blair) das “indústrias criativas”. Os segundos, de olho nos “cargos” ou com entusiasmo simplório, embarcaram na velha miragem da “indústria” e do “nacional”. Nesse último caso, é a ressurreição do nacional-desenvolvimentismo, de Lula equiparado a Vargas e do Brasil que enfim encontra seu futuro.
A volta à ativa dos fórceps do progresso não deu luz à idéias alienígenas, das quais nos falava Roberto Schwarz, e sim a uma criatura fora do lugar: a Ministra Ana de Hollanda. Suas aparições são constrangedoras e quase suscitam compaixão diante do despreparo. A última (quando escrevemos) foi no Programa do Jô Soares. Na entrada em cena, a Ministra entrega ao âncora um CD de sua “autoria”. Ela precisa “provar” o que não deveria precisar de “prova”. Pior, nesse ato temos algo que Freud definiria de ato narcísico (de enamoramento de si mesmo) e “Bleuler diria talvez autístico” .
Sem contar com os “erros” grosseiros, tipo a declaração de que os recursos da “renúncia fiscal” (Lei Rouanet) seriam privados, a Ministra e sua assessoria de comunicação sequer percebem que o programa do Jô é literalmente uma “cópia” cujo original é norte-americano: cópia ruim de um produto “alienígena”, numa indústria cultural “nacional” que também vive de remix e sampleamento. Esse é o mundo – horroroso – do Copy Right: o direito da indústria de intermediação de copiar produtos importados e ruins, ao passo que os estudantes pobres da Escola de Serviço Social da UFRJ não podem copiar (xerocar) o saber para produzir e inventar novas relações de poder.
Dilma de Hollanda e o enigma da “sustentabilidade”
O fato de a Ministra sequer articular um discurso acabou criando, no movimento de protesto e na sociedade, mais confusão do que clareza. A isso juntou-se a tentativa, por parte daqueles que negociaram essa virada rumo à “industria cultural nacional” (rebatizada, segundo a moda, de “industria criativa”), de esconder, atrás do que justamente foi definido como “autismo” da Ministra, o autismo teórico deles e político do governo Dilma. É preciso enxergar a realidade, por triste que seja. A política reacionária de Ana não é formulada por ela, mas faz parte de um governo de “continuidade” que se caracteriza por fechar as (poucas, mas importantes) brechas e ambigüidades que os governos Lula mantiveram ao longo de 8 anos. O MinC reacionário tem que ser enxergado pelo que é: o MinC de Dilma de Hollanda.
Com efeito, a restauração em curso só se explica pelo fato que os formuladores da campanha e do governo da Presidenta Dilma, por um lado, não entenderam nada dos oito anos de gestão Gil-Juca e Célio Turino do MinC nos governos Lula e, por outro, nada entendem do papel que a cultura desempenha no regime de acumulação contemporâneo (no capitalismo “cognitivo”): um regime em plena, aberta e durável crise global. Barbara Szaniecki resumiu de maneira cristalina essa situação: os que “bolaram” o MinC da Dilma (no PT e na campanha presidencial e a própria Dilma) consideram a cultura como sendo a “cereja” em cima do bolo, quando na realidade se trata do “fermento” que define o que o bolo vai ser (que o faz crescer permitindo assim seu compartilhamento). A cultura é o fermento que define o valor do “bolo”.
Aqui, poderíamos desdobrar nossa crítica em várias direções.
Uma delas seria desmontar a maneira simplória como o MinC atual “dispensa”, com um gesto soberano e soberbo, a noção antropológica de cultura para falar genericamente de “arte”, como se os prepostos soubessem dizer algo sobre o estatuto – para lá de indefinido – da arte, a não ser o gaguejar da Ministra quando ela o atribui a si mesma, exatamente como funciona o direito hereditário e seu estamento.
Uma outra direção poderia apontar, por um lado, para a lógica parasitária do direito autoral e, por outro, para a relação que é preciso enxergar entre políticas de direito autoral e políticas de inovação tecnológica (patentes e licenciamentos).
Mais um eixo de reflexão poderia dizer respeito ao “digital” enquanto paradigma geral: não algo específico a um segmento da cultura, mas ao mundo! O mesmo vale, obviamente, para a mais última balela da “economia criativa”. Não existe nenhum setor criativo. Pelo contrário, a cultura e sua transversalidade hoje definem a dinâmica do valor em geral, sua dimensão “criativa”. Frisar a transversalidade da cultura no lugar da especificidade de um setor dito criativo.
Ao passo que o próprio capitalismo cognitivo (cujos “global players” são hoje as redes sociais, Facebook, Youtube e os algoritmos do Google, Yahoo etc.) pensa e se organiza a partir de uma visão “cultural” da economia, o governo Dilma faz exatamente o contrário e introduziu no MinC uma “secretaria” para pensar a “cultura” desde o ponto de vista da economia. Com isso, zeram-se as experimentações do período Gil e abrem-se as comportas para uma nova geração de dependência. Como sempre, em nome da afirmação abstrata do interesse superior (“nacional”), colocam-se as bases de sua concreta entrega aos interesses multinacionais.
Todos esses eixos de reflexão merecem desenvolvimento, mas aqui pretendemos nos concentrar sobre a chamada “sustentabilidade” e, com ela, sobre a “gestão” que tanto parece preocupar a Presidenta.
Cerca de dois anos atrás, numa das mesas do Colóquio que a Universidade Nômade organiza há alguns anos na Fundação Casa de Rui Barbosa (no Rio de Janeiro), um dos convidados fez um discurso extremamente crítico sobre a política dos Pontos de Cultura, dizendo que “não eram sustentáveis”. Essa fala impactou o público e os organizadores, certamente não pela sofisticação das argumentações, mas pelo fato de seu formulador ter exercido (e continuar exercendo) vários cargos importantes no MinC e depois dos governos Lula – sempre na área “cultural”.
A fala parecia uma posição isolada e, vinda de um dos burocratas eternizados nos “cargos comissionados”, incomodava de modo particular. Naturalmente, o burocrata pensa a sustentabilidade dos outros, convencido que a dele é divina, vem do Céu de suas competências e não do inferno do fisiologismo e outras combinações que constituem a prosaica realidade da política e da economia: a economia política, dizia-se tempos atrás.
Por um lado, essa fala foi bem um fruto maduro (e podre!), do próprio processo de representação. O “representante” se torna “o dono do poder” e passa a ditar regras aos “representados” (nesse caso, os “merdinhas” – como alguém qualificou os “pontos de cultura”). Pelo outro, o mais interessante estava mesmo no que ninguém suspeitou no momento: essa fala antecipava a mudança atual. O fato é que, em setores do governo próximos da “indústria cultural” tradicional bem como do circuito dos mega-eventos que vieram para pautar novos e reacionários eixos de homologação do Brasil no circuito da globalização espetacular, uma cumplicidade se estabeleceu a partir do discurso da “sustentabilidade”, ou seja, de um termo suficientemente indefinido e politicamente correto para dizer que os “pontos de cultura” são assistidos e incapazes de estar no mercado diante de uma “indústria cultural” que, ela sim, merece os cuidados das políticas públicas. Nisso, aplicou-se aos “pontos” o mesmo discurso que ao longo de 8 anos a mídia aplicou ao Bolsa Família.
Não nos interessa aqui reconstruir em detalhes como esse discurso se processou retoricamente (por exemplo, nos artigos de Cácá Diegues sobre “Industrias Criativas” ou nas declarações de Luiz Carlos Barreto sobre as diferenças entre “amadores” e “profissionais” da cultura). O que interessa é que o governo Dilma desenvolve apenas um dos eixos dos governos Lula, o pior: a homologação do Brasil e dos pobres dentro dos valores do modelo vigente de desenvolvimento. Acontece que essa política não é apenas “pior” porque completamente alinhada aos valores de um sistema (capitalista) de exploração e expropriação, mas também porque a governança desse regime de acumulação está mergulhada numa crise sistêmica comparável àquela pela qual o mundo passou em 1929, uma crise que vai durar e da qual ninguém sabe como “sairemos”.
Podemos resumir a questão da “homologação” de maneira “impressionista”: Lênin dizia que o “socialismo” são os “soviets mais a eletricidade”.
Com Dilma, só sobra a eletricidade: a mega usina hidroelétrica de Belo Monte e as Centrais Nucleares de Angra dos Reis (para não falar do Código Florestal de Aldo Rabelo) como os emblemas dessa corrida rumo a um progresso não mais iluminado pelo Sol do Porvir, mas pelo apocalipse atômico de Fukushima (que renova – em pior – aquele de Tchernobyl).
Temos aqui uma primeira qualificação do conceito de “sustentabilidade”. O termo usado como um critério de “racionalidade”, algo que pode ser “mensurado” pelos métodos de “gestão”não significa nada: como se faz para calcular a destruição de uma região inteira do Xingu para se tornar a bacia da “megabarragem”? Como medir o apocalipse de Fukushima diante da sistemática sonegação de informações à qual assistimos, pior do que fez a antiga União Soviética em Tchernobyl?!
Como avaliar a “sustentabilidade” da Grécia diante das dezenas de trilhões de dólares queimados em poucas horas de pânico das bolsas? Como qualificar a “sustentabilidade” da economia brasileira quando ela continua atrelada à inflação dos juros (que por sua vez se baseia em uma solução apenas aparente da “inflação” dos preços) e, pois, transferindo para a elite mais de 6% do PIB ao passo que o “pobre” Bolsa Família teve dificuldades em se manter com menos de 1% do PIB?!
Evidentemente, “sustentabilidade” não significa nada e “gestão” ainda menos. O problema não é “como” tornar algo “sustentável, mas QUEM, ao mesmo tempo, dá sentido ao conceito e faz esse cálculo.
A segunda qualificação que nos interessa é a da crise. A comparação com a Grande Depressão de 1929 não deve ser tomada apenas do ponto de vista dos seus indicadores econômico e financeiros, mas sobretudo, na perspectiva de que a “saída” da crise está completamente indefinida e os desfechos dependem de como as lutas sociais saberão abrir novos rumos e dar nova significação à economia.
Diante da falência global do sistema do crédito (em 2008 e 2009) e agora da crise da dívida soberana européia e norte-americana (que já se transformou em crise social) e do medo que começa a acumular-se sobre a solvabilidade dos títulos da dívida estadounidense, o debate sobre “sustentabilidade econômica” adquire mais um elemento de complexidade que, aparentemente, não passa pela cabeça dos nossos burocratas.
Ora, a complexidade e a gravidade econômica, social e política da crise não se deve ao fato de que ao mundo falta uma governança para alcançar a “sustentabilidade”, mas que ninguém sabe mais o que significa ser “sustentável”. A complexidade da crise se resume exatamente no fato que falar de sustentabilidade não significa mais nada, pois é todo o sistema de referência – todas as métricas – que entrou em colapso.
Por um lado, todos os esforços que os governos multiplicam (por enquanto sem sucesso) para tornar a economia sustentável (ou seja, para voltar ao crescimento com “emprego”) ameaçam a sustentabilidade em termos de relação ao meio ambiente (pensemos à loucura da saturação do trânsito em todas as metrópoles brasileiras e quanto foi decisivo o subsídio público por meio da isenção do IPI). Pelo outro, é a própria dimensão “cultural” do valor (o peso dos intangíveis, seja na dinâmica da Bolsa que naquela do trabalho imaterial) que o torna incomensurável.
Políticas Culturais e Políticas Sociais: levar a sério a questão do valor
Políticas Culturais e Políticas Sociais: levar a sério a questão do valor
Sem pretender aqui resumir o debate sobre as definições possíveis do conceito de cultura, uma delas, proposta por Claude Lévi-Strauss nos parece particularmente útil: por sua adequação imediata diante dos impasses atuais, por sua possibilidade de balizar os debates e pesquisas futuras.
Numa conferência pronunciada no Japão em 1986, o grande antropólogo nos deu uma série impressionante de indicações teóricas e política. Em primeiro lugar, ele lembrou a importância política da “relativização humanista” da noção antropológica de cultura que ele mesmo tinha apresentado num trabalho encomendado pela Unesco no segundo pós-guerra (para o combate ao racismo).
Tratam-se de duas afirmações interligadas: (a) “para que uma civilização possa pensar a si mesma, ela tem que dispor de um ou muitos outros que sirvam de termo de comparação”; (b) “nossos (ocidentais) valores não são os únicos”. Nesse sentido, Claude Lévi-Strauss nos diz que, depois da cultura dos poucos (aristocrática) e dos ricos (burguesa) chegou o momento da cultura democrática: “nada do que é humano será estranho ao homem”.
Em um segundo momento, o velho antropólogo propõe, por um lado, uma distinção entre “cultura” e “sociedade” e, pelo outro, uma qualificação do capitalismo contemporâneo. A cultura diz respeito à relação entre homem e natureza: a significação na administração das coisas (“cultivar” a terra). A sociedade diz respeito às relações entre os homens: o “governo dos homens”. Ao mesmo tempo, o capitalismo passou de um paradigma (industrial) que “transformava os homens em máquinas” para um baseado na “transformação das máquinas em homens”.
Com base nisso, Claude Lévi-Strauss se permitiu um pouco de “otimismo”: a sociedade vai poder se libertar da maldição de ter que explorar os homens para que o progresso aconteça e a cultura possa assumir definitivamente a tarefa de “fabricar” o progresso, ou seja – nós acrescentamos – de redefinir seus “valores”, de resolver o enigma da “sustentabilidade”.
Dito de outro modo e com algumas inflexões. A transformação das máquinas em homens não é o fato da robotização (como Claude Lévi-Strauss pensava, não por acaso no Japão!), mas da centralidade dos processos de produção da “subjetividade”. Não um processo linear de libertação tecnológica, mas uma nova alternativa entre uma exploração (heteronomia) que, investindo a própria vida, se aparenta a uma nova escravidão e uma libertação que, por ter como base a potência cooperativa da vida, pode afirmar uma real autonomia. No cerne dessa alternativa, temos pois a possibilidade de repensar relação entre o trabalho da cultura e o os valores da sociedade.
O governo Lula tinha dois embriões, precários mas potentíssimos desse horizonte: o Bolsa Família e os Pontos de Cultura (e o MinC como um todo). O Bolsa Família era (e ainda pode vir a ser) uma potentíssima politica cultural: uma política da relação entre homem e natureza, ou seja do reconhecimento das dimensões produtivas da própria vida (da produção de subjetividade) e por isso teve um sucesso político, social e econômico imprevisto; os Pontos de Cultura são uma potencial política social, ou seja capaz de enfrentar a questão sem resposta da sustentabilidade, na medida que articulam o reconhecimento produtivo da vida (Bolsa Família) com a mobilização democrática do trabalho (os pontos e os editais, o trabalho colaborativo das redes mais em geral). Contrariamente à miopia do burocrata e à cegueira do governo, os Pontos de Cultura e o conjunto de políticas inovadoras do MinC constituem a própria base para resolver o enigma da sustentabilidade.
Foi com esses dois embriões – Bolsa Família como política cultural e Pontos de Cultura como política social – que o país enfrentou a crise econômica iniciada em 2008 e é somente na continuidade e no aprofundamento dessas ações conjuntas que o Governo Dilma poderá enfrentar o desafio da construção de uma democracia real, exatamente nos mesmos termos que – na Espanha – é um novo tipo de movimento social que pratica: Democracia Real Ya.
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