Por Guilherme Varella, no Observatório do Direito à Comunicação:
Na quarta-feira (29/8), a CCT (Comissão Especial de Ciência e Tecnologia do Senado) aprovou o Projeto de Lei da Câmara (PLC) 35/2012, que tipifica crimes digitais. Já tratado na imprensa como “marco penal da Internet”, o PLC pode ir em breve para o Plenário do Senado. Sua aprovação preocupa e acende o alerta vermelho sobre a regulação da rede no Brasil. Menos pelo teor do seu texto, de menor potencial lesivo que o famigerado PL 84/99, aprovado em versão minimalista na Câmara. E mais pelo que significa: termos, a toque de caixa, uma lei penal antes mesmo de aprovarmos o Marco Civil da Internet (PL 2.126/2011), com os princípios, responsabilidades e direitos para a utilização cidadã da rede.
Num cenário pré-eleitoral, de esforço concentrado do Congresso, prestes a paralisar suas atividades, surpreende negativamente o esforço dos parlamentares em dar prioridade à lei específica de crimes cibernéticos – cujo escopo representa percentual pequeno dos usuários da rede – em detrimento de uma das leis mais avançadas e abrangentes do mundo. Lei que equilibra interesses e dita parâmetros de atuação de todos que utilizam a Internet: sociedade civil, iniciativa privada e poder público. Nesse cenário de “urgência” política, é difícil crer que a tipificação de delitos penais é mais importante que garantir a liberdade de expressão, a privacidade, os direitos dos usuários e a neutralidade da Internet no País.
Mesmo ciente da importância do Marco Civil, o Governo Federal não se empenha efetivamente para aprová-lo. Tramitando em regime de urgência desde o início do ano na Câmara, com bons e sucessivos relatórios de texto, o PL 2.126/2011 não obteve quórum para sua aprovação no início de julho, antes do recesso parlamentar. No começo de agosto, a Comissão Especial sequer foi convocada, e sua próxima sessão, prevista para o dia 19 de setembro, pode não ser definitiva para a votação acontecer. Depois disso, sabe-se lá quando volta à pauta.
Se há resistência de poucos, porém fortes, grupos empresariais restritos ao setor de telecomunicações – já que o PL toca no necessário debate sobre neutralidade de rede, com a não discriminação do tráfego dos usuários e outros princípios a serem respeitados pelas empresas – e, de outro lado, expressivo apoio da maioria da população, causa perplexidade a postura do governo.
A Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) reivindica competência para regular a neutralidade de rede, ainda que na camada lógica isso não caiba a ela. Na esteira, o Ministério das Comunicações não se empenha publicamente pela rápida votação, muito pelo contrário. E assim, enquanto alguns setores do Executivo, como o Ministério da Justiça, defendem o projeto, na contramão, o topo do Governo (Presidência, Casa Civil, Secretaria de Relações Institucionais) não se esforça na mobilização de sua base parlamentar. Assim, interesses privados vão prevalecendo sobre a demanda de toda a sociedade, que participou ativamente na elaboração e no debate público do projeto.
Pronto para ser aprovado
E isso é um fato extremamente relevante. Discutido há mais de três anos, de forma direta e democrática com a população, o Marco Civil representa um novo paradigma de cultura política, de construção normativa e de participação social. Surgiu como uma resposta propositiva ao recrudescimento de direitos e vigilantismo na rede propostos por várias iniciativas, como o PL 84/99. Foi construído colaborativamente, através de consultas públicas que receberam centenas de contribuições de todos os setores, e debatido abertamente em diversos seminários pelas capitais do país, até que alcançasse o estágio atual.
Maduro, o projeto possui algumas virtudes a se destacar: (i) a ampliação dos direitos dos usuários de Internet, a exemplo do direito à privacidade e à proteção dos dados pessoais; (ii) a consolidação de fundamentos importantes, como a defesa do consumidor e a finalidade social da rede; (iii) a definição de princípios norteadores: liberdade de expressão e qualidade da rede, por exemplo; (iv) e a consolidação do princípio da neutralidade, com o tratamento isonômico na transmissão de conteúdos. Nesse último ponto, ressalte-se a valorização do Comitê Gestor da Internet (CGI), órgão multissetorial responsável pela governança da Internet no País, que passa a ser ouvido na regulamentação, por Decreto, dos critérios da neutralidade.
Outro aspecto muito positivo do texto é delimitar claramente a responsabilidade dos intermediários pela retirada de conteúdos da Internet. Os provedores de serviços somente serão responsabilizados civilmente se, a partir de ordem judicial, não removerem conteúdos postados por terceiros. É claro que há espaço, ainda, para a inclusão de outras balizas, como a penalização de provedores que, por iniciativa própria, retirarem conteúdos de forma abusiva e não razoável. Contudo, desde já institui-se uma base legal sólida para as decisões judiciais, atualmente carentes de lógica e fundamentação. Isso sem deixar de dialogar com outros diplomas específicos, que permitem ações administrativas essenciais no tocante à manutenção de páginas e conteúdos na rede, executadas, por exemplo, pelos órgãos de defesa dos consumidores na Internet.
Nesse ponto da responsabilidade, é preciso que o PL 2.126/2011 mantenha a regra da retirada de conteúdos apenas com ordem judicial, sem margem para remoções arbitrárias. Isso é essencial, pois há uma pressão muito forte da indústria autoral tradicional (reprográfica, fonográfica, etc) para que retorne ao projeto um mecanismo sumariamente excluído durante a primeira consulta pública: o “notice and take down”. Este mecanismo permite que conteúdos postados por usuários sejam removidos sem avaliação do Judiciário, a partir de notificações extrajudiciais e do julgamento privado dos provedores. Na Comissão ou no Plenário, os deputados não podem, em hipótese alguma, aceitar que o “notice and take down” seja inserido no PL, sob pena de violar drasticamente a liberdade de expressão e o acesso democrático à informação.
Dessa forma, hoje o projeto está pronto. Deve ser aprovado na integralidade. A sociedade civil organizada o apoia. Recentemente, mais de 30 importantes entidades nacionais, em conjunto com várias organizações internacionais de direitos civis na Internet, assinaram uma carta pública pedindo a aprovação imediata do PL 2.126/2011. Empresas, comunidade científica, autoridades públicas engrossam o coro. Porém, enquanto isso não acontece, tomam frente projetos de menor necessidade, que competem a atenção do Governo e dos congressistas. Urge a priorização efetiva desse projeto essencial para a Internet no Brasil. Depois de tanta amarração técnica, com o jogo já avançado, o Marco Civil está na marca do pênalti. Basta acertar a cobrança.
* Guilherme Varella é advogado do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, especialista em direito autoral e acesso à cultura e ao conhecimento
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