Até estive chateado por
ter corrido para me despedir dele e, depois de um vôo de 25 horas, com
múltiplas escalas – porque foi o vôo possível – ter chegado a Belém uma mísera
hora de pois dele ter partido.
Porém, refletindo sobre
isso, ocorreu-me que esses desencontros se repetem, eventualmente, ao longo de
toda nossa existência. Por mais nos esforcemos para estarmos à tempo, há os limites de tempo do tempo, o tempo dos
outros, o tempo da carne, o tempo de morrer.
De certa maneira, todos
temos, efetivamente, esse desencontro marcado com a morte. A nossa, é claro,
que se espelha na morte dos outros, principalmente dos mais próximos. E,
evidentemente, a morte das pessoas queridas.
É um desencontro porque
evitamos pensar nele. Mas está marcado.
Aliás, não apenas com a
morte, temos “desencontros marcados” com muitas pessoas, eventos,
acontecimentos, sentimentos. A vida é feita de desencontros marcados, e é
preciso estar preparado par eles.
O que é melhor é pensar
que a história que assim se dá, se dá como anagrama de algo. É inevitável.
Anagrama para o exercício de nossa hermenêutica privada e movediça. Anagrama
para nossa imanência. Para imanentizarmos aquilo que, ao longo do tempo, vai
ficando transcendente.
Isto dito, gostaria de
agradecer as mensagens de apoio que recebi, aqui, por email e por telefone, a
respeito da morte de meu pai. Não imaginam como essa atenção é reconfortante e
como ajuda a superar as dificuldades colocadas por sua ausência.
Quando o falecimento vem
após a enfermidade é sempre mais fácil. Porém, mesmo assim, a chegada do fim é
sempre uma incógnita. E é por isso que o afeto, as manifestações de apoio e de
amizade são tão significativas.
E como ajudam!
Em janeiro de 2012
detectamos um câncer em seus pulmões e o ano foi, para ele, desses imensos
esforços físicos que se faz para sobreviver, talvez sabendo que não viveria,
mais do que alguns meses e dias. Ele sempre esteve bem e sempre fez piadas
sobre seu estado de saúde. Não sentiu nenhuma dor, em momento algum, o que seria
comum nesse tipo de câncer. Mas não as sentiu. Fez algumas sessões de
quimioterapia que, penso, foram importantes para que tivesse uma melhor
qualidade de vida, mas que também lhe pediram muito da sua saúde.
O caminho paralelo foi
duro: sua bexiga parou de funcionar e precisou ser substituída por uma bolsa
externa; seus intestinos apresentaram, igualmente, inúmeros problemas. Por fim,
os pulmões se deterioraram. Os pulmões que ele sempre me disse que eram fracos
no seu sangue, independentemente do quanto muito que fumou.
Que eram fracos porque
sua mãe, Maria Vera, minha avó; sua querida tia Lia, minha madrinha; seu avô
Felipe e outros e outros dos seus morreram de enfisemas pulmonares sem nunca
terem fumado. Os pulmões que ele dizia que eram fracos nele, tinham o agravo do
muito que foram usados.
E enfim, se foi. Novo,
aos 68 anos, perto de 69. Mas 68 anos bem vividos.
Como mencionei, era uma
criatura intrigante.
E, devo dizer, nunca foi
fácil ser seu filho: inteligente, culto, de uma perspicácia extrema, polêmico,
muitas vezes egoísta, inveteradamente irresponsável, cotidianamente irritado, quase
sempre incômodo, contraditório.
Nunca foi fácil ser seu
filho.
Enquanto minha mãe vivia,
até que as coisas iam bem, mas depois... filhos não controlam pais. Muito menos
pais enlouquecidos e cheios de literatura nas veias.
Quando há alguns anos
veio o AVC, do qual se recuperou heroicamente, as estripulias diminuíram... um
pouco. Morou comigo e depois com minha irmã.
Cartesiano e pragmático
como me pretendo (a bem dizer, o seu antípoda), tentei, em vão, estabelecer-lhe
metas, objetivos, divisões de tempo e cardápios balanceados. Sempre em vão.
Nunca me senti tão
insignificante quanto no dia em que tentei ensinar meu pai a usar uma agenda.
E isso sem falar nas
incontáveis vezes em que fui obrigado a ensaiar vagas lições de ponderação.
Logo vi que pitos de filho de nada valem.
Por outro lado, é
inegável o tanto que aprendi com ele.
Amigo das boas coisas da
vida, apaixonado por livros, pela mecânica de armas antigas, por cães de raça, conhecedor
da mística judaica, amante da beleza das mulheres, leitor de constituições e de
tratados de Direito Constitucional, leitor voraz da ficção brasileira e de poesia,
releitor permanente de Machado de Assis, Eça e Balzac, colecionador de livros e
revistas de gastronomia, pesquisador dos crimes ocorridos no passado de Belém,
interessado pela morfologia dos répteis, memorialista do cotidiano, lembrador
contumaz de sua infância e juventude, memorialista de velhos embates entre Remo
e Paissandu, mas também apaixonado pelo Fluminense... carioca manqué – de tanto que lembrava das ruas,
dos restaurantes, dos sebos e livrarias do Rio de Janeiro... E quanto mais? Amante
dos bons whiskies, dos puros maltes, causeur
e contador fabuloso de histórias.
Tudo isso pode parecer um
pouco extravagante, mas tinha todo o outro lado: a simplicidade das suas
amizades de rua, sua flânnerie
diária, passando por padarias, bancas de revista, mercados, comidas de rua,
sentando para engraxar os sapatos e ver a vida passar; sua paixão pelas sopas
mais simples, sua amizade com jornaleiros e com porteiros de todos os prédios
do perímetro de onde morava, ali na casa da minha irmã.
Nunca foi fácil ser seu
filho. Mas não sabem como me esforcei...
Quanto aos whiskies, por
exemplo. Era para ele e por ele que, nas festas na minha casa, eu oferecia
peças incomuns à inculta Belém, preferindo os Cutty Sarks e os Old Machinists,
por exemplo, a esses Reds, Blacks, Chivas da vida e coisas desse tipo, para
usar suas palavras, “sem espírito” e “típicas de uma Belém que perdeu o gosto e
esqueceu do que vale à pena de fato”.
Esses termos ecoavam sua
ironia, sua crítica feroz a tudo o que fosse amedrontado, pobre de espírito –
ou, para referir outra de seus xingamentos de predileção, “pequeno-buguês”.
“O que desgraça a
civilização é a pequeno-burguesia”, ele repetia, sempre.
Essa ideia reflete,
percebo, sua filosofia política, plena de um esquerdismo de modo algum
dogmático: “O que precisamos combater é a pequeno-burguesia, é lá que estão os valores
arraigados e que não mudam; os valores espirituais de um Brasil arrogante,
autoritário e arbitrário. A grande burguesia não tem valores, é fácil de
comprar”.
E daí vinha a sua
compreensão do governo Lula: “Lula é um gênio, porque ele cria as condições de
governabilidade tranquilizando e ridiculamente
promovendo o grande capital ao mesmo tempo em que promove o lumpem. Lula não caiu nesse papo de
proletariado, que é um conceito que não descreve o povo brasileiro. Ao
transferir renda para o povo, ele ignora a pequena-burguesia e, enfim, faz a
história avançar”.
O que se resumia em
frases como “Um governo de esquerda precisa ser trágico, senão não conta. Lula
é um trágico: ele é a consciência histórica da esquerda, porque trai seus
ideais para garantir a marcha da história! O PT encena a tragédia grega da
história brasileira!”
Aí também estava a sua
crítica e seu rancor em relação ao velho PCB, o partido do seu coração: “O
problema do PCB é o dogmatismo. Eles querem transferir conceitos marxistas para
uma realidade extravagante, como a brasileira. Proletariado, por exemplo: tal
como descrito por Marx, proletariado só existe em alguns lugares de São Paulo;
ou burguesia: São Paulo não tem burguesia, tem gente rica, tem elite;
burguesia, historicamente falando, só existiu no Rio, no Recife e em Belém”.
Ou: “É bobagem pensar em
luta social usando conceitos como luta de classes. No Pará, a luta entre Remo e
Paissandu é mais expressiva do que a luta de classes”.
Meu pai... cheio de
enigmas e de-códigos, intrigante... provocador.
Dessa mesma matriz de
pensamento também vinha sua irritante mania de se meter com meus namoros de
adolescente: “Essa moça é uma pequeno-burguesa ridícula; só serve pra comer e
ir embora!”
Com o perdão do
geracional machismo, é necessário observar seu posicionamento tolerante às
escolhas de sexo, religião e identidade de qualquer um.
Mais de que em meus
namoros, ele se metia com minhas leituras, intrigado com a existência de um
filho que lia mais filosofia que romances.
Lembro quando me pegou
lendo Santo Agostinho, “A Cidade de Deus” – que ele mesmo comprara. Quase teve
um colapso e, preocupado, foi logo me acusando: “Agora está virando místico!”
Percebo que seu maior
medo, a meu respeito, é que eu não desenvolvesse o senso crítico. Imagino que a
leitura de Agostinho pudesse me cambar para o lado dogmático mais que para o
lado filosófico.
Foi logo depois desse
episódio que ele veio com aquela história:
“Eu acho que estás
precisando de um pouco de dissipação!”.
Frases que me
constrangiam enormemente.
E ele sempre me
incitando: “dissipa-te, dissipa-te”.
Com efeito, eu tentava
estar à sua altura. Embora, devo dizer, não, exatamente, me dissipando.
Mas estar “à sua altura”
nunca era fácil. Aos seus olhos, eu era quase um prussiano. Filho tímido e
introspectivo de um pai expansivo e desvairado, ouvi coisas como:
“Minha droga é o whisky,
não suporto coisas como maconha e cocaína, mas pensando bem, acho que um
pouquinho delas não iriam te fazer mal...”
Por exemplo.
Bem...
Se eu fosse um rebelde, o
seria sem causa.
O problema dele, em
geral, era com minhas leituras. Na sua biblioteca, bem construída, havia coisas
que ele desprezava mas que julgava que devia ter, porque lhes reconhecia valor
sem que, necessariamente, gostasse deles.
E quis o acaso que eu
gostasse de alguns desses textos. Agostinho eu apenas li, mas me tomei de
paixões com gente que ele também julgava perigosa.
Uma vez ele escondeu de mim o livro que eu mais
amava, o livro que levava todas as noites para a cama: a tradução de 1959 do De
Officiis, de Cícero, feita pelo prof. Maximiano Augusto Gonçalves, com direito
ao original em latim, frase sobre frase. Um livro que fora ele, também, quem
comprou.
Peguei meu pai reclamando para minha mãe: “Não
sei o que ele vê nesse livro. É um elogio de Roma!, de Roma!”.
Mais para Grécia do que
para Roma, mais para Baco de que para Apolo; sempre.
Entre nós, muita
contiguidade, mas, inevitavelmente, um enorme fosso.
Um fosso que eu
procurava, de alguma forma, suplantar, mas todo esforço que fizesse para estar
à sua altura sempre era em vão.
E ele me dizia coisas
como: “Evidentemente é uma incapacidade tua”, “Lamentável, Fábio, essa tua
compreensão” e “O fato não é esse; e em teu caso é sempre outro”.
Comungávamos da mesma
paixão pelos livros e da mesma posição política. Mas meu pai, por assim dizer,
dissipava-se.
Há uma anáfora aí.
E isso, veja-se bem,
apesar de ele sempre me dizer – ah, aquela frase que tanto me moldou – “A pior
coisa em uma criatura é demonstrar suas emoções”.
Bem, ele demonstrava
várias, embora pouquíssimas concernentes à vida familiar. Mas podemos ignorar
esse fato, mesmo porque em minha casa era proibido comemorar parvalhices como
dia das mães, dia dos pais, dia dos namorados e coisas desse tipo.
“Bestialidades
materialistas”.
Mas, por tradição de
minha avó Maria Vera, era inconcebível não comemorar-se o Dia de Reis...
Penso que era alguém que
praticamente não prestava atenção em nossos interesses quando estes não eram
coincidentes com os seus – embora, quando isso acontecia, fosse capaz de
diálogos que duravam anos.
Um tema rigorosamente
ausente de nosso diálogo era o meu trabalho. Nenhum interesse sobre ele. Acompanhava
o que eu escrevia, mas com um distanciamento crítico que, na verdade, sempre me
foi utilíssimo: ele não se sentia nem compelido e nem obrigado a gostar do que
eu escrevia, e estava totalmente à vontade para me criticar. E isso foi de uma
generosidade preciosa, sempre, para mim.
O que ele não acompanhava
era meu trabalho, digamos assim, formal: emprego, carreira, títulos. Tudo isso,
para ele, era desinteressante.
Na verdade, percebo que
meu pai tinha certo distanciamento em relação às universidades. Sempre
desprezou diplomas e títulos acadêmicos. Se um filho não quisesse ir à
universidade... nenhum problema. Achava fundamental, por outro lado, a leitura.
Nos últimos anos, com
movimentos físicos limitados em função do AVC, releu o que amava: obras
completas de Machado de Assis, Jorge Amado, Érico Veríssimo, Graciliano Ramos,
Moacyr Scliar, Dalcídio Jurandir, Oswald de Andrade, Pedro Nava, Rubem Fonseca,
Joel Silveira e alguns outros. Ele amava a literatura brasileira, antes de
tudo.
E era um crítico ácido de
toda bobagem. Mas fazia questão de elogiar certas futilidades – conquanto
fossem, como dizia, futilidades do espírito. Contundente, costumava dizer o que
pensava, a quem fosse, quando julgava
necessário:
“Sabes, és uma besta, só
não sei ainda se de pai e de mãe”.
Alguns o detestavam.
Outros, o contrário. De
qualquer forma o que lhe era inegável era a sua virtude mais presente: a arte
da conversação. Charmeur, meu pai
sabia cativar quando contava uma história. Multiplicava as alegorias, as
anáforas, as anamneses. Recuperava assuntos de duas horas atrás, perguntava com
graça o que os outros pensavam. Alterava monólogos com frases curtas, de
impacto, e trazia, repentinamente, para o diálogo, informações inusitadas, de
uma cultura aberta, vasta, que dobrava em livros antigos e em enciclopédias do
fim do mundo.
E, o que era incrível:
mantinha, com certas pessoas, por anos a fio, conversações específicas. Com um
amigo, era um acontecimento banal de 20 anos atrás, que sempre fornecia margem
para novas interpretações. Com outro amigo, era um detalhe qualquer da medicina
legal, uma de suas paixões.
Em nossa vida, penso que
mantive alguns diálogos específicos, todos eles de longa duração, que
atravessaram as décadas.
Conversávamos sempre
sobre literatura e sobre seu próprio passado: sobre a Belém de seu passado, o
Rio de Janeiro e a Petrópolis de seu passado, sobre a história e suas
estranhezas, sobre as pessoas que conheceu e as coisas que presenciou.
Há anos disputava com
ele. Disputava e entendia-me. Retornava. Revolvia.
Não, nunca foi, realmente
fácil, ser seu filho. Porém, é preciso dizer que muito do que sou não seria sem
ele. Sem sua cordialidade, fidalguia, extravagância mas também simplicidade;
egoísmo mas também generosidade; e, sobretudo, talvez, sem a sua insanidade.
Todos esses eventos foram
“desencontros marcados”. Todos os temos a vida inteira e durante.
À nós de compreendê-los e
aproveitá-los.
Comentários
Que belas palavras e que belas imagens você usou para descrever nosso amado primo Luiz Fernando. Receba de todos nós, parentes desterrados no Rio, nosso carinho nessa hora tão difícil; e peço que os transmita a seus irmãos e a toda a família.
Fique com Deus,
Maria Luisa.
Regina Alves
Acabo de ler teu emocionante e reflexivo relato sobre o teu pai e meu amigo Luis Fernando Castro. Estou fora de Belém e pretendo escrever sobre os incontáveis papos que tivemos nas mesas do então Gio, que ambos frequentávamos. Lembra que estive com ele em tua casa, por ocasião da seleção para o curso de cinema?
Receba o meu abraço fraterno, de imensa solidariedade