"Que fait-tu là?" (Que fazes aí?)
"J’escargotte". (Eu escargoteio.)
Escargoter é um desses novos verbos que vão
surgindo, na língua francesa como em todas as línguas, da interação quotidiana.
Significa “ir devagar”, “tomar seu tempo”. A menção ao escargô não demanda
esclarecimento maior. Os caracóis têm sua reputação lenta – e seu alento é que
o lento, em geral, permite melhor o encontro com as coisas.
Cansado da longa viagem de 25 horas, havendo
dormido pouco, estava ali como um escargô. Um escargô em Montreal. Concedi-me
dois dias para escargoter pela cidade, cultivando o acaso, pensando nas coisas
feitas e a fazer. Olhando, escutando, pisando no chão, caminhando. São meus
preâmbulos aqui. Estou aqui para 45 dias de trabalho imersivo, por meio do qual
me atribuo a tarefa de fechar um pós-doutorado. Seria fácil se eu tivesses
melhores respostas para as perguntas que nunca parei de me fazer, mas não é o
caso. Talvez que nunca seja – e “e daí?”... imagino que “e daí?” deva ser uma
expressão bastante usada pelos escargôs no seu estar-no-mundo. Imagino que
falem “e daís?” para tudo, a toda hora, na sua lentidão talvez reflexiva.
Em meus preâmbulos, deambulo. Passo das ruas
à “Grande Bibliothèque Nationale”. Bibliotecas são meu habitat natural. Deambulando,
escargoteando, edaisando, vou olhando e me deixando imergir nos livros que
estão ali. Vou pegando um ou outro ao acaso. Lendo aqui e ali, lendo jornais,
revistas.
E foi assim que me permiti sentar no chão da
biblioteca, tendo às mãos um livrinho sobre a história de Atenas.
Distraído numa eternidade sólida, a voz do
guarda da biblioteca, gentil, mas decidida, me subtraiu de uma discussão sobre
as invasões persas. O guarda me perguntou:
"Que fait-tu là?" (Que fazes aí?)
Respondi com os termos que tinha em mente:
"J’escargotte". (Eu escargoteio)
Disse como quem diz o que lhe parece
essencial. O guarda da biblioteca não conhecia a palavra. Permaneceu me olhando
com aquela expressão de resignação que têm os guardas da Grande Biblioteca
Nacional do Quebec – e talvez de mais nenhuma biblioteca, treinados que estão
para ter paciência e para lidar com a incrível quantidade de gente doida que
anda por ali. Resignado, mas cumpridor das suas tarefas, ele me comunicou:
"Bah, les reglements
t’interdisent!" (Bah, os regulamentos te proíbem!)
- "Oui, oui, excusez-moi, mais
exactement de quoi, d’escargoter?" (Sim, sim, me desculpe, mas exatamente de
que, de escargotear?)
O guarda tomou fôlego e me olhou firmemente.
"De rester assis là, comme t’es, toi". (De ficar sentado aí, como tu
estás)
Era minha última chance, é claro. Levantei,
me desculpei outra vez e segui meu destino, entre as prateleiras de livros que
pareciam se bifurcar no horizonte, como senderos borgianos.
Ainda lentamente, perdendo meu próprio olhar no horizonte que, nas bibliotecas, se conforma em diagonal, por entre as fileiras de livros que se deixam ver por fileiras mais próximas.
Ainda lentamente, perdendo meu próprio olhar no horizonte que, nas bibliotecas, se conforma em diagonal, por entre as fileiras de livros que se deixam ver por fileiras mais próximas.
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