Jamais consegui obter, de meus pais e avós, a
revelação da identidade secreta da pessoa que, no Natal em que eu tinha 5 anos
de idade, em 1973, vestiu-se de Papai Noel e quase conseguiu acabar com a festa
de todo mundo. Após longos anos de raciocínio e ponderações, estou convicto de
que essa pessoa era minha babá, a Quicê, ou Dedê, como eu, privadamente, a
chamava. Porém, algumas pistas falsas foram colocadas em meu caminho para me
desviar da resolução desse enigma. Em geral, essas pistas falsas sugeriam que o
malfadado Papai Noel da noite era o tio Antônio, ou melhor, tio Antoniquinho,
como eu, privadamente, o chamava. Esclareço que a alcunha desse tio se devia ao
fato de que havia já, na família, meu amado tio-avô Antonico, já diminutivo de
outro Antônio, a quem dava referência e que ficara no passado. Mas jamais
acreditei nessas pistas. Em primeiro lugar porque o tio Antoniquinho era magro
como um pavio, sendo impossível vesti-lo de Papai Noel de maneira razoável, respeitando,
minimamente, às normas do bom senso. Em segundo lugar, porque, o tio
Antoniquinho sempre era a desculpa para tudo e levava todas as culpas que minha
avó conseguia lhe atribuir. Em terceiro lugar, porque ele jamais se prestaria a
um papel desse naipe, considerando que,
nessa época, embora já tivesse abandonado sua aventura hippie (fôra
expulso do movimento, depois conto o porque), andava desacreditado de todos os
mitos e ilusões que apaziguavam a felicidade das famílias paraenses – Papai
Noel inclusive.
A favor da hipótese Quicê, restava o fato de que no
aniversário da minha irmã Milena, ocorrido pouco antes, em outubro daquele 1973,
minha mãe convenceu-a de se fantasiar de Arlequin, para animar a festinha e
alegrar as crianças e que, apesar dos esforços de minha mãe e da prórpia Quicê,
isso também praticamente acabou com a festa, porque todas as crianças presentes
entraram em pânico quando ela fez sua entrada triunfal e desataram a chorar convulsivamente.
Uma das crianças até fugiu da casa e só foi encontrada a uma quadra de distância,
já na esquina da 14 de Março, minha rua, com a João Balbi. Esclareço que,
naquele tempo, não era comum a presença de palhaços e outras figuras
fantasiadas nas festas infantis.
E, a respeito do referido enigma, meu raciocínio é
simples: quem se veste de Arlequin e faz a cagada que fez, não está longe de se
vestir também de Papai Noel, e fazer cagada ainda pior.
O fato é que o episódio tornou-se um tabu na
família, provocando constrangimentos que se tornaram não-ditos e silêncios
eternos. A prima Sônia Regina, a quem eu, privadamente, chamava de Tointoin,
uma vez tentou esclarecer o acontecido, mas um olhar severo de minha avó
calou-a para sempre. A priminha Rita, que era pouco mais velha que eu e já
deixara de acreditar nessas histórias, corroborou minha hipótese ao mencionar o
fato de que assistira o momento em que colocavam o falso Papai Noel no carro do
meu avô Oscar, absolutamente estressado com a situação, para levá-lo ao Pronto
Socorro.
O tabu se produzia porque, na família, tanto de
minha mãe como de meu pai, eu era a criança mais em idade de ser criança, naquele
tempo, e havia uma expectativa geral em me iludir, provocando-me isso a que em
geral compreendem como felicidade, com esse arranjo. Era o primeiro neto e o
primeiro filho de todos os lados. De minha parte, procurei retribuir a todas
essas expectativas, fingindo que ver Papai Noel em ação (deixando os presentes)
era a coisa mais importante da minha vida. Na verdade, eu também encenava,
procurando atender às gerais expectativas a meu respeito quando, objetivamente,
o ponto alto da noite seria, simplesmente, a descrição do mapa das constelações
que meu avô José estava a ponto de me revelar – depois de muita insistência de
minha parte.
Do que sei, a coisa foi muito rápida.
O Papai Noel (a Quicê) deveria entrar na casa pela
janela do meu quarto, para isso atravessando o quintal onde residia o Quinquin.
O Quinquin era o dobermann.
Assim eu, privadamente, o chamava. Seu verdadeiro
nome era Rolf. Rolf do Capintuba. A esse tempo meu pai já desistira de impor, ao
pobre animal, o nome imponente de Rolf, porque todos adotaram a alcunha que eu
– a alegria da casa – lhe conferira, e o Rolf, para todo mundo, virara o
Quinquin. Meu pai passou anos comentando que Quinquin era um nome que tirava toda a dignidade de um dobermann. Não sei se a dignidade, mas ao menos a empáfia - para usar de palavras suas, proferidas, 30 anos mais tarde, a respeito de outra cachorra da casa (a poodle Bonifácia Tan-Tan) aquando de sua primeira tosa no estilo "poodle" que lhe cometeram.
De qualquer modo, o Rolf tornou-se Quinquina sob meus desígnios (Devo fazer um parenteses para esclarecer que eu costumava nomear, privadamente, as criaturas. Até os cinco anos de idade eu praticava a nomeação do mundo, esporte gratificante que, a esse tempo, constituia o melhor da minha literatura).
De qualquer modo, o Rolf tornou-se Quinquina sob meus desígnios (Devo fazer um parenteses para esclarecer que eu costumava nomear, privadamente, as criaturas. Até os cinco anos de idade eu praticava a nomeação do mundo, esporte gratificante que, a esse tempo, constituia o melhor da minha literatura).
A própria Quicê era grande amiga do Quinquin e os
dois viviam em confabulações. Não obstante, o Quinquin não reconheceu a Quicê
(julgo que era ela), vestida de Papai Noel, e atacou-a. E não apenas a ela.
Igualmente ao saco do Papai Noel, provavelmente confeccionado por minha mãe,
onde estavam todos os presentes das crianças da casa.
O estrago foi imenso. Nada sobrou. Talvez um pouco
da Quicê…
E isso tudo foi ainda menos problemático do que o
Natal de 74…
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