Há 20 anos atrás eu usava presentear meus amigos, no Natal, com "palestras", que escrevia a respeito deles. Era presente de coração, feito com uma das (raras) coisas que sei fazer razoavelmente: escrever. Agora, em 2019, decidi retomar o velho costume, acreditando que, nestes tempos em que tudo ameaça a boa-fé, a sinceridade e a amizade, precisamos declarar, cada vez mais, nossa devoção à amizade e nossa alegria de viver-juntos, de estar, de estar-no-mundo-com-os-outros. São textos de agradecimento, aos meus amigos, por serem que são e por estarem ali.
Segue, então, a série Palestras sobre os Amigos. Neste episódio, a Palestra número 52, sobre a Biá:
Biá e a recusa de Ulysses
Senhores a senhores,
A clássica figura de minha vizinha e amiga Maria Beatriz M. F., a Biá, constitui, em meu imaginário, a exegese perfeita da recusa de Ulysses, tema estrutural dos estudos clássicos.
Por tal “recusa de Ulysses” se entende a maneira como Ulysses recusou-se, determinado, a viver no seu próprio presente. Por sua exegese, compreende-se crítica a esse comportamento, que a alguns pareceria infantil e que, à Biá, certamente, pareceria mentecapta.
Partamos da recusa, para chegar à exegese.
O navegador Ulysses, em toda a Odysseia, nunca habita seu tempo presente. Ele vive sempre na saudade de Ítaca ou na esperança de para lá retornar. Trata-se da suspensão da temporalidade estrutural de todos os navegadores – sejam os navegadores de fato, sejam os que navegam na própria vida.
Ítaca conforma-se não como um lugar, mas sim como um antes-lugar ou um depois-lugar. Nela, tem-se duas contra-temporalidades, duas grandes ficções: o passado e o futuro. Ambas impedem-nos de habitar a verdadeira e única dimensão do tempo que nos é possível, o presente.
Ítaca conforma-se não como um lugar, mas sim como um antes-lugar ou um depois-lugar. Nela, tem-se duas contra-temporalidades, duas grandes ficções: o passado e o futuro. Ambas impedem-nos de habitar a verdadeira e única dimensão do tempo que nos é possível, o presente.
Bem sabemos que agrassar o passado ou esperar o futuro constituem ilusões vãs, próprias de historiadores sem consciência histórica, de escritores sem controle das próprias tramas e de museólogos que não leram romances russos.
Por isso mesmo que a autocrítica do passado e a ironia quanto ao futuro constituíram a base do projeto educacional do Mouseîon – do grego museion, templo das musas – situado no bairro real, o Basiléion, de Alexandria, no Egito helenista e ptolomaico que foi, durante mais de cinco séculos o melhor lugar do mundo para educar os jovens e torna-los “sábios” – bem entendido que “sábio” é palavra em desuetude que, em seu passado, serviu para designar os indivíduos que haviam perdido o medo.
Por isso mesmo que a autocrítica do passado e a ironia quanto ao futuro constituíram a base do projeto educacional do Mouseîon – do grego museion, templo das musas – situado no bairro real, o Basiléion, de Alexandria, no Egito helenista e ptolomaico que foi, durante mais de cinco séculos o melhor lugar do mundo para educar os jovens e torna-los “sábios” – bem entendido que “sábio” é palavra em desuetude que, em seu passado, serviu para designar os indivíduos que haviam perdido o medo.
O grande medo. Dividido em suas formas clássicas: o medo da morte, as fobias da vida e a timidez. No Mouseîon de Alexandria o ciclo básico dos estudos durava três anos: No primeiro, combatia-se a timidez. No segundo, exterminava-se com as próprias fobias e, no terceiro, enfrentava-se, com decisão, o medo de morrer. O discente que lograva perfazer esse ciclo, cheio de provações, era declarado apto a iniciar o caminho para tornar-se “sábio”.
Lição a aprender: a finalidade da vida humana não consiste em evitar ou dissipar a própria morte – ou seja, em continuar presente – mas, sim, em aceitar a vida como ela é, efetivamente participando de seu presente.
Isto havendo sido dito, conclamo que percebam que a querida Biá, foi, em alguma de suas pregressas existências, com toda a evidência, aluna no Museîon de Alexandria. E não apenas isso: que perfez todo o ciclo básico de estudos dessa renomada instituição, havendo sido conclamada a tornar-se sábia.
Digo-o porque a Biá lida com o passado e com o futuro e não se afeta por eles. Ela nunca habita profeticamente um dado passado com o qual lide e nem idealiza um futuro desmedusado. Passado e futuro, nas mãos da Biá, são como óculos de grau maior para ver o presente. A Biá não nem receia o futuro e nem se torna refém do passado – é contramestre deles, rompendo com a recusa de Ulysses e com seu o seu paradoxo.
Sabem, confesso que gostaria de chamar Ulysses a um canto e fazê-lo ouvir uns conselhos da Biá.
Suponho que a Odysseia teria sido, nesse caso, mais feliz. Tal como toda a aventura humana que dela parte.
Fábio H-C.
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