Hoje eu ia ler o « Decamerão » – leitura apropriada para nosso isolamento – mas acabei encontrando o « Stigmata », de Erving Goffman, e me distraí. Incomodado com um trecho, parti em busca de « Purity and Danger », de Mary Douglas, e acabei encontrando o Levítico.
Não li nada direito. Continuei confinado, de quarentena, pesando nas ordens que Deus deu ao sacerdote Aarão, irmão mais velho de Moisés: as ordens de separar o impuro do puro.
Nestes tempos nos quais as marcas das impurezas virais são tão dissimuladas, bem sabemos que nada, nem os estigmas estudados por Erving Goffman, nem os tabus estudados por Mary Douglas, têm o poder de separar o impuro do puro. E, por via das dúvidas, restamos todos impuros – de quarentena.
Pelo menos restamos acreditando, ao menos isso, que basta lavar muito bem as mãos e usar uma máscara, quando se a tem, porque as ordens que Jeová deu a Aarão (Levítico, 13, na Vulgata), convenhamos, são muito fortes, verdadeiramente assustadoras:
O leproso, o acometido dessa praga, deverá usar roupas rasgadas e andar com a face descoberta, mas com o cuidado de cobrir as barbas e gritará o tempo todo, a respeito de si mesmo, batendo no peito: Impuro! Sou impuro!
Por certo que se trata de mais um desses episódios bíblicos cuja dramaticidade é tão rebuscada que nem sabemos se a lição é mesmo a seguir ou a ignorar.
Em todo caso, é fato (bíblico) que Deus recomendou isolar as pessoas « tzraath », termo hebraico usado para assinalar qualquer deformidade corporal e, por extensão, as pessoas que possuíam essa deformidade. Aliás, é desse termo – não sei como – que provém, segundo os linguistas, a palavra lepra. E dele também provém a prática do isolamento que, mais tarde, será chamada de quarentena.
Na verdade, há um longo percurso entre o isolamento hebraico e o isolamento contemporâneo, mas vejam como ele é interessante. Tentemos organizar a sequência.
Num primeiro momento, o sacerdote hebraico tinha o dever de localizar as pessoas que portavam sinais de lepra e tinha o poder de condená-las ao isolamento por 7 dias. E essa condenação poderia ser renovada por 40 vezes.
Séculos mais tarde, no tempo do catolicismo mais venal, alguns padres tinham o direito de vender indulgências e o feliz cristão comprador, além do pecúnio pago, também deveria fazer penitência durante 40 dias: 40 dias de pureza. Um prazo que, conforme a gravidade dos pecados a purificar, poderia ser renovado, vejam só, 7 vezes.
Por fim, o mesmo período de 40 dias passou a ser imposto aos navios que, durante a peste negra, pretendiam entrar na laguna de Veneza e alcançar seu porto. Um prazo que também podia ser renovado por 7 vezes.
E foi em Veneza que esses quarenta dias ganharam um nome: quarantina, que virou o mais clássico dos instrumentos de contenção epidêmica.
Como diz a professora Douglas, o imaginário sobre a lepra impactou profundamente o imaginário sobre a peste. E bem sabemos que o imaginário não conduz apenas práticas e palavras, mas também as velhas fantasmagorias.
Notas :
1. Sobre o « Decamerão », bom, falarei dele amanhã ou depois de amanhã, explicando porque ele é uma boa leitura para este dias de quarentena.
2. Sobre o livro Stigmata (« Stigma: Notes on the Management of Spoiled Identity »), de Erwin Goffman, pode-se dizer que é um livro já clássico, que discute a maneira como se formam e reproduzem os estigmas sociais e como eles conduzem à marginalização dos indivíduos. Os estigmas podem derivar de condições físicas e doenças, mas também de condições sociais, pobreza, classe social, etnia, sexo, escolhas de gênero, posição política, religião, etc.
3. Sobre o livro de Mary Douglas, « Purity and Danger: An Analysis of Concepts of Pollution and Taboo », cabe dizer que é, provavelmente, o livro mais influente dessa antropóloga britânica a quel devemos tantos livros importantes. Lançado em 1966, é hoje um clássico de todas as ciências humanas. Trata-se de uma obra seminal para entender o relativismo científico ao tornar evidente que os sentidos atribuídos a algo derivam das história social e das superposição dos contextos.
4. Sobre a peste e as quarentenas, sugiro os diários de Samuel Pepys, o « Jornal do ano da peste », de Samuel Defoe e os vários livros de Gilbert Bordes. Uma leitura mais contemporânea é « O sonho de Machiavel », de Christophe Bataille. Esse livro nos mostra um Machiavel já velho, a poucas semanas de sua morte, num momento em que Florença é atingida pela peste negra e devorada pelo caos social e econômico.
5. Sobre o « Levítico », cabe encontrá-lo na Bíblia, como se sabe, onde cumpre o papel de ser o terceiro livro do Pentateuco. Trata-se de um conjunto de normas sacerdotais dos levitas, a tribo hebreia de Aarão, acrescido de uma narrativa excessivamente dramática sobre a conversação entre Moisés e Deus.
6. Sobre Aarão (não confundir com Aarão Reis, o arquiteto paraense que planejou Soure e também Belo Horizonte), o irmão mais velho de Moisés, cabe lembrar que foi o intermediário entre o irmão (por sua vez intermediário de Deus em relação aos hebreus) e o Faraó. Sim, um verdadeiro telefone-sem-fio. Ah, e também foi ele que derreteu o famoso bezerro de ouro, depois de ter um piti com a adoração alheia das vãs divindades. Tornou-se um sacerdote importante, mas no final Deus o impediu de entrar na Terra Prometida – um forte babado que depois eu conto.
7. As imagens que ilustram este texto são « O leproso », de Rembrandt, desenho feito em 1631 e uma ilustração do « Médico », figura icônica da Peste Negra.
Fábio Fonseca de Castro – Professor da UFPA
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