Já se sabe que o retorno de Lula à chefia do Estado brasileiro constitui um evento maior do cenário global. E não apenas porque significa a implosão da política externa criminosa, perigosa e constrangedora de Bolsonaro. Também porque significa o retorno de um player maior no mundo multilateral. O papel de Lula e de sua diplomacia são reconhecidos globalmente e, como se sabe, eles projetam o Brasil como um país central na geopolítica mundial, notadamente em torno da construção de um Estado-agente de negociação, capaz de mediar conflitos potenciais e de construir cenas de pragmatismo que interrompem escaladas geopolíticas perigosas.
Esse papel é bem reconhecido internacionalmente e é por isso que foi muito significativa a presença, na posse de Lula, de um número de representantes oficiais estrangeiros quatro vezes superior àquele havido na posse de seu antecessor.
Lembremos, por exemplo, da capa e da reportagem de 14 páginas publicados pela revista britânica The Economist, em 2009, afirmando que o Brasil, de repente, havia estreado como ator relevante no cenário internacional.
Mas, claro, a herança maldita deixada por Bolsonaro abalou esse prestígio, rompeu alianças, provocou instabilidades geopolíticas na América do Sul e ainda por cima deixou tantas dívidas em instituições internacionais que o Brasil está quase perdendo o direito de voto, em algumas delas.
Integração latino-americana
A América Latina será uma prioridade, algo muito anunciado e evidente, um dos fundamentos dos governos anteriores do PT. Dois elementos fundamentam essa aproximação: a integração econômica do subcontinente, que dinamiza a economia de todos os parceiros e, principalmente, a do Brasil; e o capital político internacional obtido pela liderança do Brasil nesse processo. Muita gente fala que o interesse pela integração latino-americana tem um fundamento político-ideológico, relacionado à colaboração entre de governos socialistas, mas isso não tem fundamento, primeiro porque os governos mudam, segundo, porque a diplomacia não é, normalmente, regida por isso, mas sim pela geopolítica – e o que a fundamenta é a economia política, e não a abstração siderada, como se viu no governo anterior.
Nesse sentido, uma reaproximação do Brasil com a Venezuela será, provavelmente, um elemento central da política internacional do Brasil nos próximos ambos, e isso não por razões ideológicas, e sim por razões bem pragmáticas, a um tempo econômicas (as trocas econômicas com a Venezuela têm um potencial imenso) e geopolíticas, pois com sua política de isolar a Venezuela, o governo Bolsonaro transformou o Brasil num fator de instabilidade regional, pois assim permitiu que a geopolítica do subcontinente passasse a ser disputada entre Estados Unidos, Rússia e China.
Mas a diplomacia de Lula deve se aproximar, também, do Chile, porque o governo de Gabriel Boric representa uma possibilidade concreta de trazer o Chile para um diálogo e cooperações latino-americanas mais intensificados, rompendo com a tradicional tendência de bilateralidade política e econômica entre esse pais e os Estados Unidos.
Superar a herança bolsonarista
Com efeito, a diplomacia do governo Lula parte da superação da política isolacionista e negacionista – abstrações sideradas – do governo Bolsonaro. Foi por causa dela que o país perdeu sua capacidade de influir sobre as grandes questões da agenda global. Essa política exterior afetou profundamente a imagem do país e retirou seu protagonismo no debate sobre as questões ambientais e climáticas.
Pior ainda: a política isolacionista levou o Estado brasileiro ao desatino de desmontar a UNASUL, sair da CELAC e iniciar o desmantelamento da união aduaneira do MERCOSUL. Além disso, passou a dar calote nas organizações internacionais das quais participa, devendo, atualmente, cerca de R$ 5,5 bilhões, o que pode levar a perda do direito de voto na Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) e n a Organização Internacional do Trabalho (OIT), entre outras.
Europa
Afora as questões bilaterais que unem o Brasil a diferentes países europeus, há dois elementos catalisadores, no que tange à diplomacia brasileira: a) O acordo Mercosul-UE e b) A questão Otan/Guerra da Ucrânia.
O acordo birregional Mercosul-EU, provavelmente, será renegociado, com a liderança decisiva do Brasil, para a inclusão de dois elementos vitais: a) a criação de mecanismos para que o sul possa negociar em melhores bases produtos industrializados – ou seja, com maior valor agregado e b) um protocolo complementar para a área ambiental.
O grande obstáculo desse acordo é que ele tende a levar a um processo de corrosão da base industrial dos países do Mercosul, porque se centra na redução de alíquotas de comércio de produtos primários do sul contra a redução de alíquotas de comércio de produtos industrializados do norte. É esse padrão de trocas que torna o acordo difícil: ele reduz a competitividade da indústria nacional e contribui para a desindustrialização – sendo o reforço da indústria e a reindustrialização compromissos centrais do governo Lula atual que, inclusive, colocou o vice-presidente Alckmin na cabeça do Ministério da Indústria e Comércio.
Porém, suspeito de que a diplomacia de Lula tende a perceber que o retorno de Lula e seu compromisso mais do que explícito com a preservação ambiental são trunfos que permitem uma renegociação do acordo.
Trata-se de um desafio mas, também, de uma oportunidade. Lula já deu indícios de que a diplomacia do seu terceiro governo será pautada que questão ambiental/climática. Em termos diplomáticos, esse será o grande esforço de compliance do Estado brasileiro e, mais que tudo, a chance de consolidação do país como ator global influente.
De quebra, esse protocolo complementar serviria para dar mais sentido a um acordo que teria todo sentido anos atrás, quando Donald Trump estava implodindo o sistema de Brenton Woods, que estruturava o comércio multilateral mas que, atualmente, se tornou secundário diante de outras urgências.
Em relação à Guerra na Ucrânia, a diplomacia de Lula sabe, muito bem, que não se trata de um conflito meramente regional, mas sim de uma guerra globalizada, manipulada à distância pelos EUA, tanto diretamente como através de seu braço militar-político, a OTAN.
A visão de Lula sobre o assunto ganhou contornos claros quando, em maio de 2022 disse, em entrevistas à revista Time, que a Ucrânia é tão culpada por essa guerra quanto a Rússia. Claro, foi muito criticado nos EUA e na Europa Ocidental por essas palavras, mas elas demarcam o tom de neutralidade do país. Há uma questão comercial de fundo: a dependência do Brasil à Russia, na questão dos fertilizantes agrícolas (insumo central, num setor estruturante da balança comercial brasileira, cabendo lembrar que o país importa 85% dos fertilizantes que utiliza, a maior parcela, de 23%, da Rússia) e a importância da Europa nessa mesma balança comercial, afora o acordo União Europeia/Mercosul...
No contexto presente, há uma tendência clara: o governo Lula, de um lado, tende a não concordar ou apoiar a invasão russa e, de outro, tende a explicitar sua postura crítica em relação à toda expansão da Otan.
EUA e China
Atualmente não há como evitar a multidimensionalidade da questão. Não há como preterir um país em relação a outro – tal como buscou fazer o governo Bolsonaro. E, claro, essa multidimensionalidade é um dos desafios centrais da política externa de Lula.
Nos seus dois governos anteriores, Lula desenvolveu uma política centrada no pragmatismo, ampliando as relações comerciais com a China (a pondo de torná-la, em 2009, o principal parceiro comercial do Brasil), sem dificultar ou minorar as relações históricas da diplomacia brasileira com Washington. Porém, na última década os EUA vêm pressionando seus parceiros a terem posturas não-pragmáticas e claras. Tem-se aí um dos grandes desafios do governo atual.
Até porque também a China tende a fazer – senão pressões políticas à moda de Washington – propostas tentadoras. O presidente Xi Jinping, ao saudar Lula após a eleição, já mencionou a perspectiva de “um novo patamar” para a “parceria estratégica” entre os dois países. E isso envolveria, provavelmente, importantes investimentos em infra-estrutura no Nordeste e na Amazônia, principalmente no Maranhão e Pará, considerando a estratégia chinesa de diversificar a sua fonte de minério de ferro para reduzir sua conhecida dependência da Austrália.
OCDE
Em relação à adesão do Brasil à OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), isso resta uma incógnita, mas o mais provável é a permanência do Brasil na condição de “observador” e como membro (cada vez mais ativo) do Centro de Desenvolvimento da OCDE, o que daria mais mobilidade para o país como player global.
Lembremos, o grande problema da adesão à OCDE é que, com ela, o Brasil aceita abrir mão do status de país emergente na OMC (Organização Mundial do Comércio), instituição onde sua diplomacia tem se esforçado arduamente, nas últimas décadas e, na qual esse status de “país emergente” constitui um ativo político e econômico maior.
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