Pular para o conteúdo principal

Heranças à Esquerda 3

1968 II

1968 completou seu 41º aniversário (e eu com ele, embora dias depois, em junho). Não me parece sensato dizer que qualquer de nós, a rebelião e a pessoa, já tenhamos chegado à idade da razão. Desde o ano passado, quando, pela ocasião do 40º aniversário tanto se disse a respeito, tenho refletido sobre o movimento e sobre o tratamento dado a ele. Lendo o que se disse a respeito, a impressão que fica é a de que a palavra fundamental, a que está presente em todos os artigos e reportagens, é a mesma, justamente, que Nicolas Sarkozy utilizou, como disse em meu segundo artigo desta série: herança.

E isso quer dizer muitíssimas coisas. Inclusive no que se refere ao título desta série.

Há um longo costume em nos reportarmos às heranças desses anos que fizeram revoluções. Muito se fala sobre as heranças de 1789, 1846 e 1917. Há quem fale na herança de 1989. Porém, a respeito da herança de 1968, parece pairar uma sombra de dúvidas. Qual seria, precisamente, essa herança?

Para uns, a transformação de um regime universitário em crise. Para outros, uma herança cultural libertária, de ordem sexual e estética. Menos se fala em herança política e não se aponta, em todos esses discursos, o papel de 68 na formação do debate sobre a esquerda – como se fossem coisas distantes.

Como todas as heranças, pode ser abordada em muitos planos, em termos “práticos” e em termos subjetivos.

Em termos práticos, na França, sua pátria de nascença, 68 produziu, dentre outras coisas, uma elevação do salário mínimo, a quebra do monopólio estatal de televisão, a igualdade de salários entre homens e mulheres, o fim da obrigatoriedade de autorização marital para as esposas ingressarem num emprego ou abrirem conta num banco, a despenalização da homosexualidade, a legalização do aborto e o fim da estigmatização das crianças nascidas fora do casamento, bem como a igualdade de direitos entre todos os filhos em relação à herança.

No campo da educação, 68 legou a consolidação de idéias como a da autoconstrução de saberes – a proposta de que a criança desenvolve seus próprios métodos de aprendizagem – e eliminou a cátedra, a distância feudal entre professor e alunos. Se não eliminou, certamente diminuiu o “mandarinato”, prática francesa de cega obediência ao orientador, gerativa de cortes um tanto ridículas nas universidades.

Luc Ferry, filósofo que já ocupou o cargo de ministro de educação no governo (de direita) de Jacques Chirac e autor de um livro de título rebarbativo – “O pensamento de 68: Ensaio sobre o anti-humanismo contemporâneo” – compreende 68 como um novo episódio numa longa tradição de “individualismo revolucionário”. Efetivamente, tenta reduzir o movimento à condição de revolta boêmia, atribuindo-lhe um fundo hedonista que lhe tira toda credibilidade.

Há ainda que se registrar boa dose de hedonismo, sim, mas não no sentido censitário proposto por Luc Ferry, e sim no sentido de conquista, ou auto-conquista, do indivíduo: a liberação do eu-desejante, o aceite das pulsões eróticas e sensuais. De onde um dos gritos do movimento: Mais eu faço amor, mais eu faço revolução.

Fora da França, ainda em “termos práticos”, 68 deixou marcas que moldaram o século, quase todas elas esquecidas por quem comemorou os 40 anos do movimento, no ano passado.

Posso citar algumas: a maior onda de greves da história da Itália, em 1969; a maior onda de greves do trabalhismo inglês, em 1972; a maior mobilização operária da história do Japão, em 1973; a revolução dos Cravos, em Portugal, em 1974. Além disso, a onda de protestos a favor dos direitos civis e contra o belicismo do país, que mudou a história americana, entre 1972 e 76. A reforma de leis civis em todo o planeta, bem como conquistas políticas, sociais e culturais.

Tudo isso são heranças a reivindicar, plataformas a reconstruir.

Comentários

Legal, vou procurar.

Postagens mais visitadas deste blog

Eleições para a reitoria da UFPA continuam muito mal

O Conselho Universitário (Consun) da UFPA foi repentinamente convocado, ontem, para uma reunião extraordinária que tem por objetivo discutir o processo eleitoral da sucessão do Prof. Carlos Maneschy na Reitoria. Todos sabemos que a razão disso é a renúncia do Reitor para disputar um cargo público – motivo legítimo, sem dúvida alguma, mas que lança a UFPA num momento de turbulência em ano que já está exaustivo em função dos semestres acumulados pela greve. Acho muito interessante quando a universidade fornece quadros para a política. Há experiências boas e más nesse sentido, mas de qualquer forma isso é muito importante e saudável. Penso, igualmente, que o Prof. Maneschy tem condições muito boas para realizar uma disputa de alto nível e, sendo eleito, ser um excelente prefeito ou parlamentar – não estou ainda bem informado a respeito de qual cargo pretende disputar. Não obstante, em minha compreensão, não é correto submeter a agenda da UFPA à agenda de um projeto específico. A de...

O enfeudamento da UFPA

O processo eleitoral da UFPA apenas começou mas já conseguimos perceber como alguns vícios da vida política brasileira adentraram na academia. Um deles é uma derivação curiosa do velho estamentismo que, em outros níveis da vida nacional, produziu também o coronelismo: uma espécie de territorialização da Academia. Dizendo de outra maneira, um enfeudamento dos espaços. Por exemplo: “A faculdade ‘tal’ fechou com A!” “O núcleo ‘tal’ fechou com B!” “Nós, aqui, devemos seguir o professor ‘tal’, que está à frente das negociações…” Negociações… Feitas em nome dos interesses locais e em contraprestação dos interesses totais de algum candidato à reitoria. Há muito se sabe que há feudos acadêmicos na universidade pública e que aqui e ali há figuras rebarbativas empoleiradas em tronos sem magestade, dando ordens e se prestando a rituais de beija-mão. De vez em quando uma dessas figuras é deposta e o escândalo se faz. Mas não é disso que estou falando: falo menos do feudo e mais do enf...

UFPA: A estranha convocação do Conselho Universitário em dia de paralização

A Reitoria da UFPA marcou para hoje, dia de paralização nacional de servidores da educação superior, uma reunião do Consun – o Conselho Universitário, seu orgão decisório mais imporante – para discutir a questão fundamental do processo sucessório na Reitoria da instituição. Desde cedo os portões estavam fechados e só se podia entrar no campus a pé. Todas as aulas haviam sido suspensas. Além disso, passamos três dias sem água no campus do Guamá, com banheiros impestados e sem alimentação no restaurante universitário. Considerando a grave situação de violência experimentada (ainda maior, evidentemente, quando a universidade está vazia), expressão, dentre outros fatos, por três dias de arrastões consecutivos no terminal de ônibus do campus – ontem a noite com disparos de arma de fogo – e, ainda, numa situação caótica de higiene, desde que o contrato com a empresa privada que fazia a limpeza da instituição foi revisto, essa conjuntura portões fechados / falta de água / segurança , por s...