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Teses sobre o conto

Teses sobre o conto, de Ricardo Piglia

I
Num de seus cadernos de anotações, Tchékhov registra esta anedota: “Um homem, em Montecarlo, vai ao Cassino, ganha um milhão, volta para casa e se suicida". A forma clássica do conto está condensada no núcleo desse relato futuro e não escrito.
Contra o previsível e o convencional (jogar-perder-suicidar-se), a intriga se coloca como um paradoxo. A anedota tende a desvincular a história do jogo e a história do suicídio. Essa cisão é chave para definir o caráter duplo da forma do conto.
Primeira tese: um conto sempre conta duas histórias.

II
O conto clássico (Poe, Quiroga) narra em primeiro plano a história 1 (o relato do jogo) e constroi em segredo a história 2 (o relato do suicídio). A arte do contista consiste em saber cifrar a história 2 nos interstícios da história 1. Um relato visível esconde um relato secreto, narrado de modo elíptico e fragmentado. O efeito de surpresa se produz quando o final da história secreta aparece na superfície.

V
O conto é um relato que encerra um relato secreto. Não se trata de um sentido oculto que depende da interpretação: o enigma não é outra coisa que a história que se conta de um modo enigmático. A estratégia do relato está posta a serviço dessa narração cifrada. Como contar uma história enquanto se está contando outra? Essa pergunta sintetiza os problemas técnicos do conto.
Segunda tese: a história secreta é a chave da forma do conto e de suas variantes.

VI
A versão moderna do conto que vem de Tchékhov, Katherine Mansfield, Sherwood Anderson e do Joyce de Dublinenses, abandona o final surpreendente e a estrutura fechada; trabalha a tensão entre as duas histórias sem resolvê-la nunca. A história secreta se conta de um modo cada vez mais elusivo. O conto clássico à la Poe contava uma história anunciando que havia outra; o conto moderno conta duas histórias como se fossem uma só. A teoria do iceberg de Hemingway é a primeira síntese desse processo de transformação: o mais importante nunca se conta. A história secreta se constroi com o não dito, com o subententido e a alusão.

VII
[...]
O que teria feito Hemingway com a anedota de Tchékhov? Narrar com detalhes precisos a partida e o ambiente onde se realiza o jogo e a técnica que usa o jogador para apostar e o tipo de bebida que toma. Não dizer nunca que esse homem vai se suicidar, mas escrever o conto como se o leitor já o soubesse.

VIII
Kafka conta com clareza e simplicidade a história secreta, e narra sigilosamente a história visível até convertê-la em algo enigmático e escuro. Essa inversão funda o “kafkiano”. A história do suicidio na anedota de Tchékhov seria narrada por Kafka em primeiro plano e com toda naturalidade. O terrível estaria centrado na partida, narrada de modo elíptico e ameaçador.

IX
Para Borges a história 1 é um gênero e a história 2 é sempre a mesma. Para atenuar ou dissimular a essencial monotonia dessa história secreta, Borges recorre às variantes narrativas que oferecem os gêneros. Todos os contos de Borges estão construídos com esse procedimento. A história visível, o jogo na anedota de Tchékhov, seria contada por Borges segundo os estereótipos (levemente parodiados) de uma tradição ou um gênero. Uma partida no armazém, na planície entrerriana, contada por um velho soldado da cavalaria de Urquiza, amigo de Hilario Ascasubi. O relato do suicídio seria uma história construída com a duplicidade e a condensação da vida de um homem numa cena ou ato único que define seu destino.

X
A variante fundamental que introduziu Borges na história do conto consistiu em fazer da construção cifrada da história 2 o tema do relato.
Borges narra as manobras de alguém que constroi perversamente uma trama secreta com os materiais de uma história visível. Em A morte e a bússola, a história 2 é uma construção deliberada de Scharlach. O mesmo acontece com Acevedo Bandeira em O morto; com Nolan em Tema do traidor e do heroi; com Emma Zunz.
Borges (como Poe, como Kafka) sabia transformar em anedota os problemas da forma de narrar.

Fonte: Ricardo Piglia, Crítica y ficción (Bs.As., Siglo XX, 1993), pp. 75-79. Tradução I.Avelar.

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