Em 2012 Belém completa 396 anos, mas, também, 100 anos da grande crise da borracha, ocorrida em agosto de 1912. Tratei desse tema no meu livro A Cidade Sebastiana. Era da Borracha, Memória e Melancolia numa capital da periferia da Modernidade, lançado em 2010. A data foi dramática. Reproduzo, abaixo, o Prólogo desse livro:
Na noite de 28 de agosto de 1912 a cidade de Belém do Grão-Pará foi tomada por uma série de acontecimentos surpreendentes. A memória oral situa naquela noite uma chuva de proporções tão gigantescas, que, conta-se, chegou a destruir a todos os vitrais da loja Torre de Malakof. Daquela noite lembra-se, ainda, que a cidade foi invadida por um odor profundo de gerânios, que a alguns lembrou o odor de cadáveres insepultos e suscitou a hipótese de a chuva haver alagado o cemitério da Soledade, no centro da cidade, e ter trazido os mortos à superfície da terra. Por sinal, foi também a noite de uma festa familiar na qual se viu surgirem, de dentro de paredes brancas, dois fantasmas, como me foi contado, que prenunciaram vários desassossegos. E ainda, porfim, foi a noite em que o líder oposicionista, o ex-governador Lauro Sodré, sofreu um atentado, enquanto se dirigia em seu coche para assistir a uma récita lírica no Theatro de Nossa Senhora da Paz.
O autor desse atentado foi identificado como sendo um elemento da guarda pessoal do senador Antônio José de Lemos, o político de maior prestígio na Amazônia de então. A cidade dormiu pouco, e no dia 29 de agosto de 1912, foi às ruas para ler os jornais e ouvir as discussões a respeito do atentado. Líderes oposicionistas incitaram a população e o jornal lemista, "A Província do Pará", acabou por ser invadido e incendiado. A crise política, no entanto, parecia ser um sucedâneo de crises privadas. Naqueles dias todos os estabelecimentos comerciais da cidade estavam em crise, todos os investimentos estavam ameaçados, e todas as felicidades estavam comprometidas. A pequena multidão que protestava no Largo da Pólvora contra o atentado, então, se dirigiu à residência de Lemos e também a incendiou, e o velho senador, aos oitenta anos, ainda de pijamas, foi arrastado e humilhado pelas ruas da cidade, sendo obrigado a se refugiar na casa de seus próprios adversários políticos.
Aí terminava a "Era da Borracha", de forma tão inesperada e rápida quanto foram vertiginosas as folias da sua história privada. As marcas do período eram evidentes: entre 1860 e 1920 a população de Belém cresceu cerca de 1.200%. De cerca de 18 mil habitantes no final da guerra civil de 1835, passou a contar com um número em torno de 180 mil em 1912. Um crescimento intenso, baseado, principalmente, na imigração portuguesa e nordestina, mas que contou também com fluxos imigratórios espanhóis, franceses e italianos, além de fluxos do interior paraense. A renda interna da Amazônia cresceu, nesse período, em torno de 2.800%. A renda per capta da região, que em 1910 fora calculada 323 dólares, para decair, na década seguinte, a 74 dólares, tendo sido superior, na última década do século XIX, aos valores estimados para diversas cidades da América Latina.
No entanto, o monopólio que a Amazônia mantinha sobre a produção mundial de caucho (a seiva milagrosa que modificava o processo industrial de todo o mundo e que equipava indústrias crescentes, como a automobilística) não duraria para sempre. Preocupados com as manobras especulativas que começaram a ser desenvolvidas por exportadores paraenses e portugueses em 1908, em Nova York, 407 companhias e 231 firmas internacionais formaram a "Rubber Growers Association", que passou a financiar pesquisas e a desenvolver técnicas de cultivo ordenado - na Amazônia, afora algumas poucas experiências, a atividade sempre foi extrativista - com plantações próprias na Malásia.
Essa produção de borracha no oriente subiu de 3 mil quilos em 1900 para 28 milhões de quilos em 1912. Em 1913 alcançou a produção de 48 milhões de quilos e, em 1914, a Malásia produziu mais da metade da borracha mundial, 71 milhões de quilos. Em 1919 a borracha oriental alcançou 90% do mercado mundial, desbancando, definitivamente, a concorrência da produção amazônica.
Não será difícil imaginar o baque que sofreu a estrutura econômica amazônica com a súbita e inesperada queda dos preços. De acordo com Paul Le Cointe, somente na praça de Belém as falências pronunciadas alcançaram o valor de 100 milhões de francos (cerca de 59.524 contos de réis), e isto somente no ano fiscal de 1913. A renda interna da região caiu de 485.833 contos de réis em 1910 (e fora ainda maior nos anos do final do século XIX) para 153.568 contos em 1915.
Em 1912, quando se prenunciou, no final do mês de agosto, a extensão que as perdas alcançariam, prenunciou-se também o final de toda uma "Era", um período de opulência, fausto e fastígio, de incrível liberalidade nos costumes e de experimentações e maneirismos na vida privada. Nos dias que se seguiram, cerca de 160 estabelecimentos comerciais fecharam as portas. Dias tumultuados, que a memória oral preenche com aparições de fantasmas, dramas individuais e uns sessenta suicídios. Dias que marcaram também a queda dramática de uma oligarquia, a dos "Lemistas", no poder desde 1897 e uma procura nunca antes registrada por passagens de navio e fretes de embarcações. A situação atingia gravemente, também, a administração pública. A prefeitura de Belém devia mais de 2 milhões de libras esterlinas e o governo do Estado devia quase a mesma quantia.
Ali terminava a "Era da Borracha". Seus mitos e metáforas, no entanto, ainda persistem. E é com base nesses fatos de agosto de 1912, inclusive nas histórias pouco plausíveis sobre os fantasmas, os misteriosos odores de gerâneo e as chuvas torrenciais e inesperadas, que constituo o "evento fundador" que possibilitou a base sígnica das produções discursivas que abordamos neste trabalho.
Ah, o livro está à venda na Fox Vídeo e - fora de Belém - na Livraria Cultura.
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