Album de retratos.
Relembrando da tia Alice: “perguntas muito bem, ... mas não sabes a quem!”
Relembrando da tia Alice: “perguntas muito bem, ... mas não sabes a quem!”
Quando eu era criança, tal como em tantas famílias de Belém, o mês de outubro era especial, tanto pelo Círio quanto pela vinda de parentes que moravam fora, para passar conosco o Círio. Eu tinha vários tios-avós que migraram de Belém, se instalando no Rio ou em São Paulo, e era esse o caso da tia Alice. Era muito especial receber toda essa gente, e mais seus filhos, e as vezes seus netos. Era sem dúvida a melhor parte do ano. A casa triplicava de habitantes, e junto com eles vinha junto uma procissão de fantasmas, presentes nas histórias e nas memórias que meus tios traziam. Para mim, que colecionava a memória dos outros e que, tal como Irineu Funes, o personagem de Borges, possuía a faculdade de uma memória ablusiva, que apenas acumulava, sem nada perder, era um momento especial para ouvir e aprender.
Tia Alice era uma razoável contadora de histórias, mas, sobretudo, era uma formadora de frases e conceitos espirituosos. Uma vez, por exemplo, eu e minha irmã discutíamos a respeito da conveniência de comer frango com a mão.
Eu possuía um espírito objetivista que, um século antes, teria sido classificado de naturalista, o que me levava a considerar óbvio que galinha se come com a mão. Minha irmã, me reprovando o latente gauchisme, insistia que era preciso usar talheres para retrar a carne da galinha de seus ossos. Solicitamos a mediação da tia Alice: “ Tia Alice, afinal, como se come galinha?” E veio uma resposta maravilhosa, que jamais esqueci:
“Com os garfos do pai Adão!”
Ou seja, com os dedos. Venci a questão e minha irmã se converteu, ainda que admoestada.
Outra vez, eu fiz um teste de QI no colégio. Eu devia ter uns 13 anos. E, para minha indignação profunda o teste indicou que eu possuía um QI inferior ao esperado para um aspirador de pó, algo como 42. Era o caso de um QI que possui a pessoa, e não o contrário. Um QI certamente inferior ao de um pinguim do Alaska, de um camundongo de laboratório ou de um macaco de circo. Cogito a possibilidade de que o teste tenha sido calculado erradamente. Mesmo porque o Xavier, o sujeito mais toupeira do colégio, que havia reprovado a terceira, a quarta e a quinta série, teve um resultado tão esplendoroso que foi convidado para hastear a bandeira do Pará na “hora cívica” semanal daqueles infernais anos do regime militar. O Xavier teve, segundo nos foi dito pelo padre-diretor, um QI semelhante ao de Goethe e ao... do presidente Geisel (eram anos do regime militar, e convinha, aos padres-diretores daquele miserável e tantas vezes repugnante Colégio Nossa Senhora de Nazaré, elogiar sempre o general da vez).
Pois bem, fiquei acabrunhado, indignado... E tia a Alice, não exatamente para me consolar, mas certamente para me apaziguar, por meio das artes sutis da auto-ironia, se saiu com a seguinte frase:
“Não te preocupes, que tens certamente um QI mais alto que o da escrivaninha de Voltaire”.
Era uma sábia do quotidiano, da vida privada.
Tanto que muitas vezes eu lhe perguntava coisas e coisas só para lhe ouvir aquela resposta que era quase o seu bordão, tão bela da ironia da facies marciana, tão repleta daquela espirituosidade que era tão propriamente dela e que ela várias vezes me disse, o olhar cúmplice, a testa franzida, um sorriso sutil:
“Perguntas muito bem, ... mas não sabes a quem!”
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