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Belém, cidade do futuro

Que honra: Hermano Vianna escrevendo n'O Globo de hoje sobre meu livro A Cidade Sebastiana:


Hermano Vianna

Belém, cidade do futuro

Talvez Mestre Laurentino com a garotada do rock e a dança do treme indiquem outro horizonte

Estou torcendo pela recuperação do Mestre Laurentino. Vlad Cunha me deu notícia de sua internação com pneumonia, quase aos 90 anos. Fui transportado imediatamente para o dia, duas décadas atrás, quando o vi pela primeira vez, tocando gaita e cantando “Lourinha americana”. Parecia alucinação febril produzida pelo calor de Belém. Eu estava na plateia de um festival de rock realizado numa estação de trem abandonada. Ao meu lado, garotos vestidos de preto. Depois de muito metal, sobe ao palco a banda Mangabezo (Vlad Cunha era um dos integrantes). No meio do show, surgiu convidado especial: Mestre Laurentino, elegantérrimo, cheio de anéis. Memphis era ali. E ao mesmo tempo, toda a história da música paraense também estava ali. Virei fã, fulminantemente. Poucos dias depois, entrevistei o Mestre na sua casa, muito pobre. Elogiei suas roupas. Ele fez questão de me dar uma camisa cheia de brilho, que está guardada e bem cuidada, como um dos melhores presentes da minha vida.

Essas alucinações bem reais são comuns ao redor do Ver-o-Peso. Não estou pensando nos telões de LED das festas de aparelhagem. Viajo para o passado, mais remoto, tendo como guia “A cidade sebastiana”, livro de Fábio Fonseca de Castro que descobri nas sempre surpreendentes prateleiras da Leonardo da Vinci (repito: minha livraria preferida, a mais cosmopolita do mundo). Sua publicação é de 2010, mas seu texto tem origem em dissertação de mestrado, com orientação de Benedito Nunes, defendida em 1995. Mesmo assim, não poderia ser mais atual, sugerindo maneiras inovadoras para pensarmos o futuro de nossas cidades e de todos os projetos de modernização no Brasil, ainda que a partir de história muito paraense.

Fábio Fonseca de Castro identifica “um modo periférico de participar da modernidade”, nostálgico, “marcado por uma aguda sensação de perda, por formas de saudade de um desconhecido que não foi vivenciado senão em pensamento” ou pela “pungência cotidiana de ‘ter-perdido-algo’”. É sempre uma saudade do futuro. Ainda no senso comum atual de Belém: “A ‘Era da Borracha’ está no futuro, não no passado. [...] O passado é ulterior. A narrativa histórica pode, sim, ser lida como se fosse um sonho”. Sonho de quando éramos/seremos Brasil Grande, desenvolvido como o “Primeiro Mundo”. Lembrando (todos dados retirados de “A cidade sebastiana”): “entre 1860 e 1920 a população de Belém cresceu cerca de 1.200%”; “a renda interna da Amazônia cresceu, nesse período, 2.800%”. 

São tempos lembrados como magníficos, vertiginosos, encantados: trouxas e trouxas de roupas sujas “foram mandadas para Paris para serem lavadas”; o intendente Antonio Lemos “resolveu proibir as pessoas feias de circularem no centro da cidade”; as pessoas só atendiam o telefone em francês (“Oui... Qui la demande?... Un moment s’il vous plaît...”), “ainda que o interlocutor falasse em português”; “conta-se que, ao redor do Theatro da Paz, (a administração Lemos) inventou um tipo de paralelepípedo revestido de borracha com o qual se evitava que os ruídos do trânsito prejudicassem os espetáculos”. Muita novidade na cidade ao mesmo tempo: arborização com mangueiras, serviço de bondes, matadouro, montanha russa, a loja de departamentos Cúpula de Malquistã, “uma lei que proibia esmolar em Belém”. Virou modelo de “civilização”. Visitando o Rio de Janeiro em 1904, Lemos ouviu de Pereira Passos: “Eu começo a fazer na minha cidade o que V. Excia. fez na sua”.

Foi bom (para quem?) enquanto durou? Em 1912, veio a “Queda”: falências em série, suicídios, dívidas colossais. Naquele que talvez tenha sido o mais famoso e pioneiro caso de biopirataria globalizada, o inglês Henry Alexander Wilkens “enviou 70 mil sementes de hevea brasiliensis para Londres, alegando ao governo do Pará que serviriam para embelezar o Jardim Botânico de Kew e recebendo 10 libras por milheiro de sementes”. Todos nós sabemos onde foram parar: nas plantations da Malásia: “em 1919 a borracha oriental alcançou 90% do mercado mundial, desbancando, definitivamente, a concorrência da produção amazônica”. Resultado no imaginário local: Fábio Fonseca de Castro fala de um “passado-látex”, conjunto de “falas encantadas, e sebastianas” que incluem eternamente repetidas “saudades do que poderia ter sido mesmo sem ter acontecido”.

Talvez Mestre Laurentino com a garotada do rock pulando ao seu redor e depois a dança do treme do tecnobrega indiquem outro futuro. Fábio Fonseca de Castro escreveu outro livro, “Entre o mito e a fronteira”, com estudo da aventura da produção cultural recente de Belém. João de Jesus Paes Loureiro também tem indicações amazônicas preciosas. Mas isso fica para outra coluna, também no futuro.

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