Irreverente, vulgar, ácido, obsceno,
sarcástico... Os adjetivos que podem descrever o Charlie Hebdo seguem nessa
direção. O jornal, quanto a ele, segue uma tradição secular – nos dois sentidos da palavra –
vigente na França deste a revolução de 1789: a do pasquim irreverente,
anti-religioso, ateu, popular. Uma tradição que, na verdade, está na base
política da sociedade francesa e que se assenta sobre o princípio da critica à
religião.
Essa filosofia
política – a do “secularismo”, ou da “laicidade” – é o princípio fundador da
República Francesa e está no bê-a-bá que todas as professoras pregam às
crianças desde o maternal. Meu filho fez o maternal e os primeiros anos de
escola lá e acompanhei essa história na minha vida quotidiana. A laicidade, que
significa a radical separação entre Estado e Religião, é, na verdade, bem mais
que isso: é o próprio motor da vida política, da concepção política de nação,
na França.
Há toda uma longa
história cultural, que não procurarei resumir aqui, em torno dessa questão, mas
acho interessante fazer referencia a ela se a questão é falar do Charlie Hebdo.
A propósito: esse Hebdo, do título
do jornal, é um diminutivo coloquial de “hebdomadaire” significa “semanal”. E
há um ar de graça nisso, porque toda vez que os franceses cortam uma palavra no
meio – e eles sempre fazem isso – é como se estivessem desmistificando poderes.
Por exemplo, dizer Sarkô, por Sarkozy, é uma forma irônica, talvez irreverente,
pela sua coloquialidade, de falar do ex-presidente. Assim, dizer Hebdo, em vez
de hebdomadaire, além de mais propositado e sonoro, também contém um aviso
sobre a disposição à irreverência da publicação.
O Charlie Hebdo foi criado em 1969,
na esteira da rebelião estudantil do ano anterior e seguiu sendo publicado até
1989 – ano emblemático, do bi-centenário da revolução. Ficou três anos fechado
e ressurgiu em 1992.
Suas provocações lhe renderam vários
atentados, o mais importante deles, antes do ocorrido este mês, foi o de 2011,
quando jihadistas lançaram uma bomba na redação – sem que houvesse vitimas.
Em 2006 publicou a antológica capa
na qual mostra Maomé morto de vergonha pelos seus fieis integralistas: “É duro
ser amado por imbecis...”.
Em 2010 o Charlie acompanhou, como sempre
acidamente, o debate que envolveu a sociedade francesa em torno da proibição do
uso da burqa no pais. A capa abaixo, exemplo dessa campanha, diz “Sim ao porte
da burqa... no interior”.
No mesmo ano o jornal satirizou o
discurso do Papa Bento XVI sobre a interdição aos cristãos do uso de
preservativos e o controle da natalidade.
A edição que provocou o atentado de
2011 foi particularmente ácida: teve como “convidado especial no posto de
editor-chefe” o próprio Maomé e o titulo especial de “Caria Hebdo”. Na capa,
Maomé dizia: “Cem chicotadas se você não morrer de rir”.
Em seguida a ela, além da bomba, que
incendiou a redação, os jihadistas também hakearam o site do jornal. O atentado
não impediu a continuidade do jornal e já na semana seguinte o Charlie saiu com
a antológica capa que trazia um redator e um jihadista atracados num beijo e a
mensagem “O amor é mais forte que o ódio”.
Nesse mesmo contexto que
Charbonnier, o editor do Charlie – um dos mortos no atentado do dia 7 de
janeiro – declarou que o jornal pretendia banalizar o islã tanto como o
catolicismo o fora, no processo de secularização experimentado pela França.
Na verdade, fizeram mais que isso:
procuraram banalizar o terrorismo, associado ao jihadismo, como demonstra a
famosa capa de uma das edições de outubro de 2014, que mostra o Profeta sendo
decapitado por um jihadista do Estado Islâmico recentemente instalado na Síria.
O letreiro diz: “Se Maomé voltasse”, enquanto o próprio avisa ao seu algoz: “Eu
sou o Profeta, estúpido”, e este lhe responde, “Cala a boca, infiel”.
Bom, em síntese, o Charlie Hebdo
segue nessa direção. Com exageros e ofensas? Sim. Talvez não seja possível
fazer sátira sem isso.
A França defende isso por princípio.
Uma coisa é um jornal, pretensamente sério, pretensamente responsável e
pretensamente comprometido com a informação inventar mentiras, caluniar,
difamar e ofender. Outra coisa é fazer a sátira. A subjetividade de toda sátira
escusa seus excessos. E por trás
desse princípio, nítido para quem quiser enxergar, está a idéia da República
laica.
A capa do Libération – o grande
jornal de esquerda francês – de hoje, fazendo referencia à manifestação, que
reuniu 3 milhões de pessoas no pais, ontem, para prestar solidariedade ao Charlie
e às outras vitimas do terror jihadista da semana passada, sintetiza em
princípio de fundação da idéia de República ao substituit o “Je suis Charlie”
por um “Nous sommes un peuple”: “Nós somos um povo”.
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