Uma vez, num debate que acontecia na
universidade, me pediram para definir o “caráter” e a “índole” dos brasileiros,
ou da “cultura” brasileira. Mesmo sabendo que essas palavras são perigosas e já
contêm, na sua simples enunciação, todo um sentido, carregado de significações
pactuadas, positivadas e cristalizadas no senso comum, arrisquei-me a dizer o
que realmente pensava: que brasileiros, se tal povo há, é, em sua essência,
violento, mesquinho, autoritário e conservador. E também disse que não podia
ser diferente, porque não é possível, culturalmente falando, que uma sociedade
que experimentou a escravidão, de maneira formal até há tão pouco tempo atrás,
e que, até hoje em dia, experimenta dissimulações da escravidão, seja outra
coisa senão violento, mesquinho, autoritário e conservador.
A platéia não gostou, porque o debate era
sobre “cultura brasileira”. Esperavam ouvir coisas que renovassem as ideias,
pactuadas, positivadas e cristalizadas, de que o brasileiro é um “povo”
cordial, amigável, dócil, futo de uma “miscigenação” bem suscedida e
espontânea. Bem sei que a “academia” constuiu e ainda constrói essas idéias.
Minha universidade é torpe, tal como a
inteligência brasieira. Pois fala de coisas que nunca houveram.
Nunca houve miscigenação, por exemplo.O
que houve, foi o estupro. O estupro da mulher negra e indígena pelo homem
branco. Nunca ouve Brasil, por exemplo. O que houve, sempre, foi a dominação de
um centro de poder sobre periferias cada vez mais periféricas, num longo e
lesto processo de colonialismo interno que privou de inteligência cada lugar
que, se aderiu à ideia de Brasil,
foi por crer, exclusivamente – e desavisadamente - que se construía uma
federação.
Nunca houve “povo”, ou melhor “povo
brasileiro”. E o que sempre houve foi massa: massa de manobra. Gente burra
sendo empurrada para sua ignorância mais profunda por meio de coletivismos
falsos, que não expunham uma “ identidade”, mas, antes uma eterna diferença.
Nunca houve “docilidade”, mas, antes,
medo, indiferença, humilhação e silêncio. Nunca houve “cordialidade”, mas antes
subserviência, controle, covardia e medo.
Ah, e também nunca houva “Academia”, mas
pacto, classe, corja e bando: bando de gente que, ao pretexto de inteligência e
de ciência, aceitou reproduzir os lugares comuns de sempre e, assim, a validar
e revalidar, com a autoridade de seus diplomas, o eterno jogo de diferenciação
que é o motor da sociedade brasileira.
Se perceberem, este texto está cheio de
aspas. Aspas indicam conceitos, lugares comuns, com os quais não se concordam.
Eu, ao menos, não concordo com o que coloco entre aspas. Aspas servem para
denunciar epistemologias. E eu desconfio de tudo o que se pretende
epistemológico. Desconfio dessa epistemologia de Brasil que constitui o senso
comum descrito acima. Epistemologias são tentativas forçadas de conferir
sentido ao que não tem, necessariamente, sentido. Toda epistemologia é
mesquinha. Toda epistemologia é reducionista. E as aspas, por sua vez, são questionamentos
de poder, ou melhor, do poder do discurso.
O momento de fascismo que o país vivencia
constitui uma experiência social, coletiva, de renovação e reprodução de velhas
epistemologias. Linguagens novas estão reformulando meios de defsa velhos discursos e, assim, renovando o pacto epistemológico que,
dando sentido ao poder dos fortes, bem como às suas latências, reorganizam a
sua dominação histórica.
A hora pede, ao bom senso, certo poder de
desconstrução. É preciso desconstruir as ordens interpostas desse velho poder.
É preciso aspear as falas que o dissimulam. É preciso aproveitar o momento para
desconstruir o “Brasil”, suas certezas e suas violências.
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