Reproduzo minha fala de ontem no debate "Mídia, poder e democracia: Esfera pública e crise política no Brasil", promovido pelo Mestrado em Comunicação, pela Faculdade de Comunicação e pelo Caco, o Centro Acadêmico de Comunicação da UFPA, ocorrido no auditório do Instituto de Letras e Comunicação.
A Narcolepsia Coletiva
Fábio Fonseca de Castro
Quero começar colocando
claramente a minha posição a respeito de uma série de questões que estão em
jogo, neste momento, na vida brasileira:
Repudio todo ato de corrupção
e acredito que toda suspeita de corrupção deve ser investigada e, se comprovada, punida.
Repudio toda e qualquer forma
de cerceamento das liberdades de expressão, do direito à associação e à
manifestação pública;
Repudio toda e qualquer forma
de abuso do poder e de abuso das prerrogativas institucionais por parte de
qualquer pessoa investida de autoridade e responsabilidade públicas, em
especial do abuso de poder e de prerrogativas cometidos pelo poder judiciário,
que deveria ser o primeiro, dentre os poderes públicos e dentre os agentes da
vida nacional, a respeitar e a garantir a Constituição.
Repudio a parcialidade, a
falta de isenção e a manipulação intencional da cobertura jornalística em todos
os seus formatos, com a finalidade evidente de produção de fatos políticos e,
pior, com intensão evidente de judicializar a vida política nacional.
Repudio a prática de
vazamentos de informações, sejam elas originadas de depoimentos em regime de
delação premiada, sejam elas grampos ilegais sobre a comunicação privada.
Repudio toda e qualquer
tentativa de ruptura da institucionalidade democrática e do Estado de Direito
vigentes no país.
Isto dito, quero dizer que nós
não estamos aqui para, simplesmente, defender o governo Dilma ou o Partido dos
Trabalhadores, embora isso possa também ser feito. O que quero dizer é que
estamos aqui para defender o estado de direito, a democracia e uma imprensa
responsável, profissional e equilibrada.
Pessoalmente, estou
impressionando, alarmado, com o avanço do estado de embriaguez política de
pessoas de uma classe média, adotando os preceitos golpistas de uma elite que,
ela, não me surpreende por seu caráter golpista.
Estou impressionado com o
poder aliciante desse estado mental e em como o poder de envolvimento desse
discurso sofista que, operado pela grande mídia brasileira, num conluio que
reúne setores importantes do poder judiciário e do setor empresarial, extravasa
todo o bom senso para virar quase uma histeria coletiva, que resgata os ódios
mais profundos do Brasil profundo e se manifesta como ódio de classe, ódio
racial e ódio de gênero.
Penso que o Brasil vive uma
espécie de narcolepsia coletiva, de envolvimento coletivo num processo de
cooptação fascista. Narcolepsia é aquele transtorno da mente pelo qual as
pessoas, repentinamente, perdem a consciência e adormecem. É mais ou menos o
que está havendo, num dos maiores fenômenos de manipulação sofista ocorridos na
história da humanidade.
Nesse cenário de ódio, a falta
de bom senso impera. Como disse o Guilherme Bolos, recentemente, parece que
defender a Constituição virou coisa da esquerda. E podemos completar, dizendo
que o delírio é tão grande que parece que defender os direitos civis virou
coisa de petista e que parece que as palavras de ordem da direita, medíocres,
amparadas por raciocínios precários, perderam completamente o pudor de seu
irracionalismo.
Estive pensando na dimensão sofista
de tudo isso. Nos últimos dias estava trabalhando com o Philebo, de Platão,
texto que remete à questão. Desculpem pela minha tendência em remeter tudo à
filosofia, mas preciso dizer a vocês que a filosofia me consola. Meu interesse,
no Philebo, era apenas o conceito de “momento”, “instante”, como o qual
trabalho, nesse texto e que estou discutindo no meu curso no mestrado, mas como
uma coisa leva a outra, é impossível não encontrar, no Philebo, elementos para
pensar na grande batalha entre o sofismo e a dialética, que é o que ocorre no
Brasil de hoje.
A manipulação midiática, a
parcialidade dissimulada de certos juízes e o cinismo de certos políticos são
da ordem desse sofismo que alimenta a marcha golpista. O que caracteriza a
estratégia discursiva dos sofistas? Justamente essa manipulação, essa
dissimulação e esse cinismo. Estou impressionado com a quantidade de pessoas
persuadidas por esses discursos e por seus artífices golpistas e penso que as
lições do Philebo sobre os riscos do “imediato”, do convencimento por
persuasão, não são sem razão, neste momento.
No Philebo, vemos a
confrontação entre a tese de Protarco, que propõe que o “bem” deve ser
encontrado no prazer e no “imediato” e a tese de Sócrates (Platão), que
acredita que o “bem” não tem fundamento em si mesmo e que, tal como o prazer,
não pode ser alcançado senão pela “reflexão” do que o constitui.
Os sofistas, como se sabe,
privilegiam a retórica sobre a verdade. Procuram o obscurecimento dos fatos
para alcançar o convencimento. Apelam para a causalidade imediata e superficial
e jogam com as aparências. Chegam bruscamente a uma tese sem mostrar o caminho
feito para chegar a ela, como se retirassem, de repente e com grande impacto,
um coelho de uma cartola, tal como ato de mágica. Eles convencem pelo
encantamento, pela sedução e pela espetacularidade da maneira com que encenam
suas conclusões. Os sofistas passam por taumaturgos: curadores mágicos. São
prestidigitadores, charlatões do sentido. Elogiam a embriaguês do prazer
repentino e desacatam a lógica.
Os sofistas extorquem o
consentimento.
Por isso, eu quero dizer,
aqui, que ninguém, eu inclusive, que ninguém de bom senso, quer que Lula, Dilma
e todo mundo deixe de ser investigado. O que não queremos é que eles, juntamente com os
avanços importantes e indiscutíveis que o PT realizou no país, melhorando
imensamente a vida de milhões de pessoas, sejam massacrados, nessa narcolepsia
coletiva, pela justiça e pela mídia.
O que não pode ser é que
Dilma, Lula e o PT sejam linchados publicamente, enquanto há outras pessoas e
instituições são completamente blindados e protegidos de toda investigação.
O que não pode é o país ficar
refém dessa elite mesquinha, que não suporta uma ascensão social que, para
dizer a verdade, foi limitada; uma ascensão social feita pelo consumo e que,
portanto, beneficia centralmente o poder dessa mesma elite; uma ascensão social
que, por ser limitada, sequer ameaça o lugar deles.
O que não pode é essa
hipocrisia seletiva da mídia brasileira, que transforma em escândalo um sítio
que nem 100 mil reais vale e que esquece, completamente, de apurar o mensalão
tucano, que desviou dos cofres públicos cerca de 100 bilhões de reais, ou o
esquema do Banestado, que desviou dos cofres públicos cerca de 40 bilhões de
reais, ou o caso dos vampiros da saúde, que desviou dos cofres públicos cerca
de 2,4 bilhões de reais, ou o escândalo do TRT de SP, que desviou dos cofres
públicos 923 milhões de reais; ou o escândalo da Sudam, aqui no Pará, até hoje
não investigado, que desviou dos cofres públicos 214 milhões de reais; ou o
Trensalão Tucano, que desviou dos cofres públicos cerca de 570 milhões de reais.
O que não pode é um Ministério
Público, como o de São Paulo, ao mesmo tempo em que faz um pedido patético de
prisão de Lula, engaveta um escândalo como o da máfia da merenda escolar.
O que não pode é a decisão
partidária de Gilmar Mendes de sustar a nomeação de Lula, sob o argumento de
que se tratava de uma manobra do governo para “blindar” o ex-Presidente contra
um provável pedido de prisão preventiva a ser expedido por Moro, enquanto que,
de acordo com uma história contada pelo jornalista Jânio de Freitas, ele,
Mendes, beneficiou-se do mesmo tipo de recurso quando era advogado-geral da
União e o então Presidente Fernando Henrique Cardoso assinou medida provisória
dando-lhe status de ministro, o que lhe garantia foro especial contra ações
judiciais em primeira instância. O que não pode é esse tipo de cinismo.
O que não pode é uma rede de
televisão, como a Globo – e as demais, evidentemente – mas principalmente a
Globo, deliberadamente e por meio de sua retórica . Sabemos que o interesse da
Globo no golpe e num governo tucano-peemedebisma é absoluto.
Por tudo isso, pelo fato de
que tudo isso que não pode, ou que não deveria poder, estar presente na
realidade da política nacional, neste momento, me parece que nós já estamos
vivendo num estado de exceção. Como disse recentemente Tasso Genro, o que
estamos disputando é se estado de exceção vai se consolidar como novas formas
institucionais não democráticas ou se vamos sair da exceção com algum respeito
pelas instituições democráticas.
Nesse golpe pós-moderno,
penso, a maior tendência é que o estado de exceção perdure e o poder público
brasileiro se consolide como um acordo com a corrupção endêmica. A maior
tendência é que viremos uma republiqueta de promotores de primeira instância,
com juízes midiatizados que se tornam salvadores da nação, tutelando a política
e colocando a Constituição a serviço do seu autoritarismo.
Se já vivemos num estado de
exceção, a resistência ao golpe já é agora. É impossível ficar cego ao que está
acontecendo. Nós não podemos vacilar diante do que está em curso. Precisamos,
de alguma maneira, conter a escalada de intolerância e de ódio que pretende
destruir as frágeis conquistas que a democracia brasileira fez.
É preciso perceber que, nesse
estado de narcolepsia geral, há um quadro de radicalização crescente nas ruas e
um desmoronamento de todas as formas de mediação jurídica ou política. A
expressão “estado policial” define bem o momento. E é nesse caldo de
cultura que se formam as tiranias.
Nesse contexto, não se trata
mais de uma disputa PT e oposição, mas um questionamento de todas as
instituições e, especialmente, da democracia. O que está em jogo são 25 anos de
estabilidade democrática.
De alguma maneira, é preciso
resistir ao golpe. Por tudo isso, quero convidar vocês a estarem presentes na
manifestação que ocorrerá no próximo dia 31 de março. Estaremos lá para
reivindicar o respeito à Constituição e o retorno a uma justiça equilibrada, a
uma justiça-justa e, consequentemente, a preservação do estado de direito no
país.
Como disse, não se trata,
simplesmente, de defender o ex-presidente Lula, o governo Dilma ou o Partido
dos Trabalhadores - embora isso também possa ser feito e embora eu o faça.
Trata-se de defender o estado de direito, a Constituição e a democracia.
É importante vir para as ruas
porque a rua é o local por excelência de toda resistência. Além disso, estar na
rua defendendo a sua posição deve liberar alguma substância, no cérebro, que
ajuda a superar a frustração diante da escalada de ódio e de tantas falas,
justificativas e argumentos parciais e incompletos que, como num discurso
sofista, vencem por recurso à ilusão de verdade e ao obscurecimento do percurso
da razão. Isso porque, na rua, encontramos pessoas que partilham dos mesmos
valores que nós e que estão alarmadas diante da possibilidade de um golpe de
estado.
Para concluir, retornando
rapidamente ao Philebo, é preciso dizer que o modo pelo qual os sofistas
extorquem nosso consentimento, a erística, está baseado, integralmente, na
suspensão do juízo racional por meio de truques retóricos e cênicos. Seu
objetivo é alcançar um interesse pontual, abstraído de todo o contexto. É daí
que surge o elogio que fazem do “imediato”. É por meio desse imediatismo que se
produz esse estado de subtração da consciência que estou chamando aqui de
narcolepsia coletiva.
A proposta socrática, em
oposição a isso, centrada na percepção de que o “imediato”, em função de sua
superficialidade, não tem fundamento senão em si mesmo, é de que o bem comum e
a verdade sejam alcançadas por meio da “reflexão”, por meio do método da
dialética, que é o que estamos fazendo aqui, neste auditório, que provavelmente
nunca esteve tão cheio de gente em toda a sua história.
Estamos aqui confrontando ideias,
no exercício justo dessa dialética. Espero que depois da minha fala outras
falas nos ajudem a contrapor ideias e que, juntos, possamos superar o exercício
erístico que leva a essa narcolepsia coletiva, pesada de interesses pontuais,
pesada de imediatismos, que o país vivencia.
Obrigado.
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