Cada um de nós tem seus artistas de fundo, desses que nos acompanham de alguma forma, nem sempre muito presentes mas, por-alguma-razão-por-ali. Tenho muitos deles e um era Leonard Cohen, morto ontem, aos 82. Poeta, compositor e cantor, judeu de Montreal, sujeito meio metafísico, dado a abordagens estranhas do quotidiano e à evocação de imagens antigas por meio de suas palavras modernas, Cohen foi uma grande inspiração para mim; várias, reiteradas e repetitivas vezes.
O impacto de Suzanne me dura longamente, talvez porque misture a imagem de um lago - e a borda de um lago é meio que meu primeiro habitat - com a dessa mulher, meio espiritual, com a qual o narrador tem - et moi avec - uma profunda comunhão espiritual. Jamais poderei descrever o quanto essa música me provocou, repetidas vezes, a insólita experiência da re-paixão, do re-amor, da re-ternutra, do re-estar-junto à minha companheira e, o quanto a Marina re-foi Suzanne.
Bom, ainda que precise ser dito que a Marina nunca gostou dessa música e nem de Cohen, apesar da minha insistência e, eventualmente, de minha indignação.
Mas Suzanne não foi a via pela qual conheci Cohen. Conheci-o por meio de um LP dos anos 80 chamado Poet in New York, o qual comprei na Gramophone Discos, que ficava ali ao lado do Parque da Residência. Tratava-se de um LP com vários intérpretes, de vários países, musicando e cantando os versos de García Lorca em Pueta en Nueva York. Meses antes dessa aquisição eu vinha lendo avidamente Lorca e quando vi o LP foi necessário compra-lo - embora eu não gostasse compras discos. De imediato, fixei em La Aurora, interpretada por Chico Buarque e Fagner. Mas lá estava, também, Cohen, interpretando Penqueño Vals Vienés, ou Take this Walz. Eu conhecia o poema, e lembro que pensei: não dá para botar música nesse negócio… Erro: dava. Havia descoberto Cohen.
Lembro também, mais tarde, quando eu morava em Montreal e ocorreu de ele receber o prêmio literário Príncipe de Astúrias, o mais importante da Espanha, que uma conjuntura de fatos agradáveis - disparados pelo acaso de ter encontrado, num sebo, uma cópia da primeira edição de um dos livros que mais idolatro, La Route de Flandres, de Claude Simon - coisas que já descrevi numa crônica - me levaram a certa introspecção ao ouvir Hallelujah, que tem efeito de bomba espiritual para muitos.
Mas que também é desprezada pela Marina, que a vê como um gospel sem contexto, apesar da minha insistência...
Na verdade, lembro do que pensei quando ouvi pela primeira vez essa música: Esse cara era para ser uma liderança espiritual, porque ele, o que faz, é uma hermenêutica de varias metafísicas estranhas que nos acompanham e só dois tipos de gente podem fazê-lo: ou judeus descrentes de sua identidade ou ateus de formação cristã.
Pois é. Mas retornando à Marina, observo que ela, curiosamente, não reconhece a grandeza de Cohen e, muito menos dá confiança para a associação que faço entre a obra deles e os afetos que dedico a ela própria. But I know she's half crazy, como diz Cohen, a respeito da sua Suzanne.
Para vocês verem como são as coisas.
Trata-se de uma injustiça, evidentemente, e talvez de uma cegueira estética.
Intimanente resto, como diz Cohen, forsaken, almost human, e de mim mesmo imagino que ele diga, a alguém outro que também sou eu, He sank beneath your wisdon like a stone.
Termino com a sugestão de uma deliciosa matéria (em inglês), publicada na The New Yorker sobre Leonard Cohen. Aqui.
E, aqui, com essa música várias vezes sublime que é Suzanne (ah, também indicio as versões de Suzanne cantadas por Nina Simone, Joan Baez e Nick Cave):
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