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Natal de 74

Ano passado contei a respeito dos incidentes que marcaram o Natal de 1973 e, como deixei em aberto a possibilidade, retorno para contar como se passou a Natal de 1974 na minha casa. Um Natal famoso, dentre os demais, porque por muitos anos, em minha casa, se continuou a comentar a sequência de incidentes que, nele, tiveram lugar. Mas lembrado, igualmente, porque foi o primeiro Natal de dois eventos maiores: o primeiro Natal neste mundo do meu irmão Rodrigo, nascido em junho daquele ano e o primeiro Natal em que passamos na casa do Lago Azul, onde passáramos a habitar havia alguns meses. Há muito a dizer sobre o Lago Azul, mas não o farei aqui para não misturar as histórias, mas é preciso dizer que, naquele tempo, era um lugar muito distante da cidade, com poucas casas (apenas três à beira do lago, uma das quais a nossa) e, a bem dizer, uma floresta – no sentido mais amplo da palavra: com bichos, cobra (cobra que é um bicho mais que outros bichos), mata e chuvas torrenciais. Chegar a nossa casa exigia atravessar 2 km de uma estrada de terra sem nenhuma iluminação e a casa era cercada de matas e quintais, com o imenso lago à frente – tudo muito propício para um Natal peculiar, um tanto romântico e, certamente, ao menos bucólico. A paisagem era indescritível.
Mas a Quicê também era.
Já contei, no relato anterior, o que a Quicê, a minha babá, aprontou no Natal de 73. Vou contar agora o que ela conseguiu aprontar no Natal de 74.
Desta vez minha mãe organizou as coisas para que a Quicê não tivesse um papel preponderante na festa. Deixou-a na retaguarda, prudentemente, e com recomendações estritas e precisas sobre o que devia e, sobretudo, a respeito do que não devia fazer.
Organizou-se uma imensa festa, na qual se reunia minha (então) imensa família e os incontáveis amigos, inclusive alguns dos novos vizinhos, dentre os quais uma família holandesa – quase todos os habitantes do Lago Azul nesse tempo, eram estrangeiros – muito contente de poder conhecer como se processava um natal paraense
Para essa noite havia dois pontos altos organizados: a própria árvore de Natal e o incrível conjunto de luzes pisca-pisca, multicoloridas, que seria nela colocado – ambos trazidos da Zona Franca de Manaus por meu pai, que a esse tempo gerenciava um escritório que possuía uma filial nessa cidade, indo lá com alguma constância.
Ok, vocês certamente estão achando um despropósito que a sensação de uma festa de Natal possa ser um reles conjunto de luzes pisca-pisca multicoloridas. Bom, esclareço, que estávamos em 1974 e que tal coisa era absolutamente incomum nesse tempo. Ademais, tudo o que vinha da Zona Franca era um must, desde que não fabricado na própria Zona Franca e que tivesse sido “importado” dos Estados Unidos, bem entendido. Estamos lidando com imaginários dos anos 70; tudo muito estranho em nossos dias…
Dessa forma, as tais lampadazinhas acabaram por se converter num dos pontos altos da noite. Para terem uma ideia de como isso afetava o espírito das pessoas, uma amiga da minha mãe, a tia M.L., até telefonara, dias antes, querendo saber, em detalhes, sobre o funcionamento do tal pisca-pisca: mas que cores tem?, quantas lâmpadas são?, mas são mesmo fortes, essas luzes?, mas como é que funciona, é à pilha?
Não, era na tomada – que precisou de um adaptador. E em relação à quantidade, vinha escrito na caixa: “99 lamps”. Obviamente aquilo me intrigava: por que não 100? Será que eram 99 mesmo? Bom, como ninguém iria se dar ao trabalho de contar, deixe-se estar a coisa, porque elas eram até poucas para ocupar a imensa área da “árvore americana” – outro ponto alto da noite, embora em função de sua altura.
A “árvore americana” era imensa, maior que o pé direito da sala. Constatamos esse incoveniente quando a montamos, dias antes. Não havia como acomodá-la e a ponta da árvore ficava ridiculamente curvada ao encontrar o teto. E não era pouca coisa: eram uns bons 30 cm. A solução de minha mãe foi serrar esses 30 cm aos pés da tal árvore para ajustá-la de maneira mais conveniente na casa e durante uma boa semana todos comentaram algo como “com são altos esses americanos”… É forte minha tentação em mudar a história e dizer a vocês que essa árvore de Natal ficou assim mesma, dobrada, corcunda, quase a sentir um torcicolo, durante toda a festa, mas o bom senso da minha mãe sempre aparou as arestas que melhor permitiriam minhas histórias futuras… Apesar disso, devo relatar que o fato realmente aconteceu, pois um tio-avô trouxe da Zona Franca árvore semelhante para a sua casa, e, lá também não cabendo ela na sua altura, durante uns bons natais a bicha ficou com a ponta dobrada, ao alcançar o teto.
De todo modo tudo ficou acomodado e o pisca-pisca, com suas 99 lâmpadas funcionou perfeitamente. Quer dizer, até à hora da festa. De repente todas as luzes se apagaram: não apenas as 99 da “árvore americana” como todas as outras da casa. Um verdadeiro black-out, que lançou nosso Natal no escuro campestre daquele fim de mundo. Logo puseram a culpa no pisca-pica, mas o fato é que nunca se soube o verdadeiro motivo do black-out, mesmo porque era habitual, não apenas no Lago Azul como em Belém inteira, as repentinas faltas de energia.
Ninguém se incomodou, porque o céu estava estrelado e porque minha mãe possuia imenso estoque de velas – ao menos 99, suponho – que pôs a acender pela casa. E porque festa era festa.
Mas daí a pouco se percebeu que outras casas, lá na frente, tinham energia e que somente a nossa passava o Natal no escuro.
Era coisa de trocar o fuzível. “O fuzível estourou!”, alguém disse, “é preciso trocá-lo”. Nunca entendi dessas coisas, mas suponho que “trocar o fuzível” era apenas um código para fazer variadas tarefas manuais que se passam na caixa de energia.
A tarefa deveria caber ao Mudo. O Mudo, ou o Mudinho, era uma pessoa muito especial e querida de todos. Ele morava nas redondezas e prestava pequenos serviços em casa. Ajudava minha mãe a cuidar do jardim – sua especialidade – e, nos dias de festa, virava garcon – embora bebesse mais que todos os convidados. Como indica a alcunha, tinha uma deficiência auditiva grave, de nascença, a qual sobrepunha com sua grande capacidade de mímica. Na verdade, o Mudo era um dos maiores contadores de casos que já conheci. De vez em quando se formava um círculo ao seu redor para vê-lo narrar, com suas mímicas, as histórias mais incríveis de que se tinha conhecimento.
Minha mãe solicitou a ele que fizesse a coisa e, no escuro, mal percebeu que o Mudo não estava muito em condições de mexer com energia elétrcia. É que ele, como sempre ocorria, havia cedido aos apelos do whisky de meu pai logo no começo da festa, e, às alturas do black-out, já estava fora de combate.
Percebendo-o, a Quicê se dispôs a executar a tarefa – mesmo sem jamais ter trocado um fusível e sem ter a menor ideia de como isso se faria. Na festa não se sabia e nem se imaginava que a Quicê, sempre muito prestativa, com seu indefectível espírito de liderança e com uma personalidade de protagonista de circo, tomava para si a tarefa.
E olhem que a Maria Caolha ainda tentou impedi-la, mas não conseguiu.
Sim, sim, preciso parar a história do fuzível para contra a história da Maria Caolha. A respeito dela, a primeira coisa que deve ser dita é que a Caolha não era Caolha. O que era, era vesga. E seu nome era Maria. Minha avó Nida, porém, ao empregá-la como cozinheira, inventou de chamá-la de Caolha. Minha avó Nida tinha uma personalidade muito forte, e pelo bem, pelo mal, a Maria deixou-se docilmente chamar de Caolha, Maria Caolha.
O nome nada dizia de sua personalidade. Caolha evoca pirata, coisa perigosa, confusão. E a Maria não era nada disso. Era um doce, na verdade. Extremamente bondosa, zelosa e, como se vê, tolerante. Observo que as relações trabalhistas que por vezes descrevo não seriam ponderáveis nos dias de hoje, mas estávamos nos anos 1970, não esqueçam, e procuro fazer o relato observando as tramas culturais ali presentes e que, evidentemente, envolvem este narrador.
De qualquer modo, gostaria de registrar que eu próprio sempre chamei a Caolha de Maria, e gostava muito dela, que vinha do interior e tinha um repertório de histórias de assobração que me encantavam. Aliás, para insuportáveis ciúmes da Quicê, a minha babá, adorava presenteá-la com “revistas de novela” que fazia minha mãe comprar, fingindo que tinha interesse no assunto.
Mas retornando ao fuzível, a Maria não conseguiu dissuadir a Quicê e esta, vela na mão, foi até o fundo do quintal, antes que minha mãe tomasse ciência da sua determinação.
Nos minutos seguintes ocorreu uma explosão ensurdecedora, um clarão de fogos de artifício iluminou a festa e a Quicê foi lançada a cinco metros de distância, com o choque que tomou, tal como um projétil ogival, fazendo-se acompanhar por um berro que todo o Lago Azul escutou.
Ao mesmo tempo, todas as 99 lâmpadas da árvore de natal acenderam-se repentinamente, e em todo o seu esplendor, para apagarem-se logo em seguida, num curto-circuito que as dizimou para toda a eternidade e que acabou por botar fogo na gigantesca árvore americana.
O pânico foi imenso. Minha avó Nida paralizou, estupefacta. O Mudo tentou apagar a árvore em chamas jogando o balde de gelo que tinha às mãos – sim, o balde, propriamente, embora com o gelo dentro – e, em seguida, uma garrafa de whisky e houve, dentre os convidados da festa, quem achasse que a coisa toda constituía uma espécie de perfórmance. Tio Brasil, por exemplo, batia palmas, assoviava dersarvoradamente e pedia bis – não, o tio Brasil não é exemplo, recordo agora do seu eterno e etupefacto cinismo. Mas os vizinhos holandeses, esses sim, achavam que tudo aquilo estava dentro de um roteiro cuidadosamente organizado. E aplaudiam o incêndio da árvore americana como se se tratasse da própria luta contra o imperialismo – ou então um ato simbólico do espírito de fraternidade paraense e, imitando o tio Brasil, todos eles, a família inteira, baltia palmas assoviavam dersarvoradamente e pediam bis
Coube à Maria Caolha a solução do problema. Percebendo o incêndio iniciado, apressou-se e acorreu com um gigantesco balde d’água, que desepejou sobre o fogo iniciado, dominando-o com heroismo invulgar.
Alguns aplaudiram. Os holandeses o fizeram com entusiasmo. Tio Brasil, com maior entusiasmo ainda, incentivando-os.
Hoje, lembrando desse ocorrido, compreendo que o incidente com a ávore americana foi uma das coisas mais importantes que ocorreram na minha vida. A lembrança daqueles dias, com sua punjança e com sua coetânea inocência, chega a ser comovente, num tempo no qual tudo se distancia.

Incrível como tanta coisa mudou. A família se nuclearizou, diminuiu, se distanciou. Quase ninguém mais há. A casa do Lago Azul foi vendida e destruída e muitas coisas já foram esquecidas. Nunca mais soube da Maria e nem mesmo da Quicê. Quase todas as pessoas que cito nesta história estão hoje dormindo profundamente, dormindo para nunca-mais e se as memórias ficam, o que mais fica, nelas, nem mesmo é por que de fato foram; mas a lembrança.

Comentários

Marise Morbach disse…
Estória ótima, dei gargalhadas. Uma delícia tudo isso. O texto nem se fala. Muitos beijos querido na Mariana e no Pedro. Um ótimo 2017 prá vocês.
Anônimo disse…
Amei a história, e ri bastante, também. Queridos Luiz Fernando ( chamado, carinhosamente, de "Pcbão pelo Zene Machado) e Marilea que tive o prazer de conhecer no Lago Azul, em 1989. Muitas saudades dos dois que, infelizmente, partiram cedo.
Onde quer que vocês estejam saibam que permanecem em minhas lembranças com doçura, e saudade.

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