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Carnaval de 75


A foto a seguir é privadamente histórica. Os apaches nela transfigurados sou eu próprio e minha irmã, prontos para um baile de carnaval infantil. Percebam que há um sutil movimento que faço com meu ameaçador tacape. Trata-se da insinuação de uma pose que, embora discreta – e justamente por isso – pretende confirmar, às gerações futuras, a minha identidade apache.
Sempre fui apache e, hoje, o confesso.
Recordo perfeitamente desse dia. Eu estava orgulhosíssimo daquilo que minha mãe chamava, de modo um tanto desrespeitoso, de a minha fantasia de índio. Minha mãe não alcançava a transcendência política do momento. Tratava-se, afinal, de eu, finalmente, assumir minha identidade mais profunda e autêntica, porque eu era, como ainda sou e serei, caso não saibam, um legítimo, profundo e autêntico guerreiro apache. Pronto para morrer em combate em defesa das mulheres e dos cavalos do clã.
Já minha irmã não parecia muito confiante dessa identidade. Na verdade, a decisão a respeito desse figurino não lhe pertencera e, embora ainda muito nova, já tinha na cabeça que fantasia de carnaval aprensentável e decente, para si, era a de bailarina, e ponto final. Não obstante, com minha determinação irredutível, minha mãe convenceu-se, e convenceu-a, nem sei como, de que iríamos de apaches.
Na verdade, minha mãe não entendia por que razão eu teimava em ser índio - num mundo de cowboys. Restava no mundo essa imênsa intolerância. Mas eu sabia a razão, e era incrível que minha mãe não a percebesse. Era a fotografia antiga que eu vira num álbum, na qual ela mesma estava de índia, no carnaval, e junto com uma tribo invejavel pelo número e disposição de ânimo. Um dia a produzo.
Não obstante, o bloco do qual, anos antes, minha mãe fez parte tinha no nome uma referência aos Tupinambás. Sim, guerreiros valiosos, todos sabemos. Mas eu era apache - e quanto a isso não se discutia! Já estamos conversados, ok?

Mas voltando ao carnavel de 1975, observo que a roupa foi produzida por minha avó, a d. Nida, e os apetrechos – o cocar, as penas, o colar de dentes de crocodilo (percebam-no: a meu ver era o “grande detalhe” da composição, o toque definitivo que atestava a veracidade da minha identidade) e o tacape foram comprados em O Mandarim, essa loja incrível (digam se não!) que ainda hoje há, no largo de Nazaré.
Desejo assinalar que aí se concretiza minha primeira experiência antropológica.
Aliás, esse colar de dentes de crocodilo (sim, vocês mal o perceberão na foto, mas, acreditem, ele era incrível) foi guardado durante uns dez anos em casa, até ser roubado por um gatuno, que além do valoroso objeto, levou apenas quatro aparelhos de telefone - dando margem para concluirmos que o sujeito acreditava que cada aparalho valia o preço que, naqueles tempos se pagava por uma "linha", coitado. Sim, os mais jovens dificulmente entenderão que, antigamente, se comprava "linhas de telefone", caras e até vendidas a prazo e que para ter uma deles se tinha que fazer cadastro e esperar alguns anos... O gatuno infleiz tomada aparelho por linha - e sabe-se lá se tomava por verdadeiros, ou ao menos por lindos, os dentes de crocodilo comprados n'O Mandarim...

Bom, voltando ao tema do carnaval... devo dizer que, durante minha infância, ao desejo de minha mãe, frequentei inúmeros "bailes". Os dos clubes e os da nossa casa, no Lago Azul, organizados por ela, sempre entusiasta do que a eles se referisse. Minha mãe era do tipo que não se intimidava em dar festas para uma centena de brincantes, fossem elas crianças, como eu e minha irmã (meu irmão, nascido em 1974, não tomara, ainda, a consciência do vasto mundo), fossem adultos, dentre os quais as inúmeras tribos bárbaras que freqüentavam nossa casa: as amigas malucas da minha avó Nida; os gauches, amigos de meu pai – dentre os quais duas dezenas de jornalistas absolutamente pervertidos e que sempre me serviram de anti-modelo, no que tange à minha posterior decisão de cursar a faculdade de comunicação; os parentes, que vinham de todo lado e que ninguém sabia muito bem de que maneira que o eram e nem, tampouco, porque, de fato, o eram; os vizinhos, muitos deles estrangeiros, sempre crentes de que minha família constituía a quintessência da alma amazônica e da contradição social brasileira; os espiões da ditadura, por todos sabidos e lambidos como tais e que, não obstante, eram fraternalmente recebidos pela generosidade insólita de meu pai e, sobretudo, a gente circunspecta e séria, estrelas da festa, que constituíam a canalha de desembargadores, juízes, deputados, capelães e apóstolos de cristo que, em minha casa, na língua malsã de minha gente, eram sempre esculhambados e escroteados sem sequer perceber que o estavam a ser e que, apesar de tudo, ainda por lá persistiam – para o regozijo de meu pai, no dia seguinte, às suas gargalhadas sempre bem dadas, em seu esporte de desdenhar de tudo aquilo que adviesse do que cria ser a pequenez da "burguesia" pequeno-burguesa paraense.
Durante uns dez anos, minha mãe organizou bailes de carnaval na minha casa. Bailes em dois tempos: o tempo infantil e o posterior tempo dos adultos. Eu, curioso do mundo, participava de todos. E vestido de índio. De apache (e nnao de tupinambá). Apesar da ditadura, os anos 70 eram muito loucos. Particularmente, suponho, em minha casa.
O desembargador Pereirinha (o nome é fictício, mas se adéqua) chegava sempre acompanhado de duas muheres, e com um pequeno estoque de lança-perfume. Anos mais tarde, ofereceu-mo. Minha primeira experiência nesse submundo Nada senti... – embora quase me sufocasse com o lenço fedorento do senhor doutor desembargador, isso sim, mais provavelmente, a verdadeira droga...
Havia também o senhor prefeito, o doutor Ajax (nome verdadeiro, por incrivel que hoje pareça), que eu muito admirava, porque era de fato figura incrível, sensata e honesta, digníssima e coisa & tal. E que queria fazer de mim um diplomata... Não obstante minha determinação, àquele tempo, de ser “pintor”... de cavernas antigas. Saudoso doutor Ajax, saudosa dona Maria, sua senhora, igualmente muito querida... Minhas saudades a si!
E havia, é claro, a tribo enlouquecida dos "contraparentes". Os que mais pulavam, por causa que, ainda, desconheço. A timidez, o tempo e as contradições do mundo imperdiram-me de oferecê-los ao Pedro, meu filho, que certamente amaria ver essas coisas. Mas fica meu relato, que é o que lhe posso dizer e ofertar de mais profundo. Embora não saiba se o relato pode superar a realidade, penso que o relato fica, e beneficia a muitos, enquanto a realidade é afeita às diputas da narração...
Os "contraparentes"... Esclareço que a categoria é arbitrária. É meu pai quem lha dizia. Por tal, catalogava praticamente as gentes todas que pulavam o carnaval em minha casa sem que se soubesse, ao certo, quem lhas havia convidado. Era uma gente mui estranha, dada a alegrias e a abraços. Não eram, ao que compreendo, tecnicamente, contraparentes, mas sim, contra-paraentes. Palavras do meu pai. Naquele tempo (e ainda hoje) eu era/sou muito pequeno, ainda, para entender a todas as ironias do meu pai. O que importa é que eram - e que estavam. A respeito deles há sempre mais que não dizer do que dizer. Embora sínteses sejam possíveis. 

E eu, vestido sempre de apache, a freqüentava: antropólogo avant-la-lettre, sincero e comovido, educado para a generosidade. O carnaval de então obliterava atenção.
...Embora não minha memória. E embora não, evidentemente, a recordação dos bailes de salão, ou melhor, especificamente, os bailes da Assembléia Paraense, do Remo e do Paraclube ao menos aqueles no quais, com minha pouca idade, eu me fazia tolerado e para os quais, de apache, transcendental, eu me dirigia, tal como na foto acima.

No carnaval de 1976 minha mãe forçou a barra e me vestiu de cowboy. Mas foi o carnaval de 1977 que, de fato, me desgostou. Nele, minha mãe me vestiu de sarong. Era moda. Se não sabem o que é vejam no Google. Impossível dizer como me senti ofendido - e, talvez, humilhado. 

O que importa, no entanto, é que mesmo com essas fantasias alienígenas, com todas elas, sempre portei, ao menos, o tal colar de dentes de crocodilo. Resistente e insubmisso... Ecoando nos detalhes a minha insubordinação tranquila. Afinal, já sabem, eu era, e sempre fui, um guerreiro apache.
De todo modo, o carnaval corria, ocorria, e, meu pai, ao menos ele, gauchiste feroz, pesadelo da família, me fornecia a sua sociologia e, dentre todos, era o único que, realmente, reconhecia minha identidade. Recordo daquele baile de 1975, no clube, quando ele se aproximou e falou:
“Ao menos um quinto dos que estão aqui pulando, dentre ébrios e sóbrios, são contraparentes, ou seja, gente próxima e ao mesmo tempo distante. Exatamente o quinto mais esquisito, canalha, precário e ridículo. O quinto que menos presta – seja pelo cinismo, seja pela ignorância, seja pela pobreza da alma. Eu, de mim, procuro salvar-me; pelo que, suponho, ao menos te salve um pouco, Fábio. Ao menos tu, meu filho, tu, tu és um guerreiro apache! Não te esqueças nunca da tua origem: tu és um verdadeiro guerreiro apache, e o resto que se foda!”

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