Senhoras e Senhores,
A língua francesa se me presta para a filosofia e é por meio dela que algumas perguntas me vêm, sonolentas, quando nem mesmo estou esperando. Uma dessas perguntas me veio, certa vez, imediatamente após uma conversação, sempre instigante, sempre plena de potenciais filosóficos, com minha amiga Marise R. M. E foi a seguinte: Est-ce un devoir que d'être soi-même?
A qual traduziria assim: Temos o dever, de fato, de sermos quem somos?
Imperioso é não confundir essa questão com o Γνῶθι σεαυτόν, Gnothi seauton – Conhece-te a ti mesmo, também sabido como nosce te ipsum, em latim – tão cara ao mundo antigo, pois não se trata de conhecer quem verdadeiramente quem se é, se é que se é verdadeiramente alguma coisa, ou mesmo alguém, mas sim de se ter o dever de ser quem se é, após tê-lo descoberto.
Todas as vezes que converso com a querida Marise minha mente fervilha de ideias, mas sobretudo de perguntas, em geral desprovidas de coetâneas respostas.
Na verdade, imaginei a seguinte cena: Chega um cidadão ao templo de Delphi. Tal cidadão perfez o desgastante caminho das Fócidas até o referido santuário, aos pés do monte Parnasso. Fê-lo em busca de autoconhecimento, posto de Delphi é um templo sagrado ao qual se busca quando não se é – nem nada, nem alguém e nem nenhuma coisa. Ao qual se busca quando não se sabe de si. Antes de entrar no templo, o referido cidadão percebe a imensa frase sorrateiramente pintada num muro próximo: Γνῶθι σεαυτόν. Isso encimesma-o. É o que veio fazer ali. E o faz: adentra no templo e se posiciona em frente à Pítia, ou Pitonisa, a sacerdotisa, que responde às suas questões, em nome do deus Apolo, com berros e gemidos lancinantes.
Sendo suposto ter compreendido o que lhe disse a Pítia, o cidadão segue em direção ao Ômphalos, o betilo sagrado suposto ser o “umbigo do mundo” e faz umaprece a Apolo, agradecendo pela resposta dada através da Pítia. No retorno, passa novamente em frente à famosíssima frase pixada no muro, o Γνῶθι σεαυτόν.
Interponho-me. Penso que já é demais. Ao nível de experiências místicas já estamos indo demasiado longe. Supondo que o pobre cidadão tenha compreendido o que a maluca da Pitonisa lhe falou, imagino a responsabilidade interposta a ele ao dever agradecer ao deus Apolo – logo a quem! – pela resposta.
Agradecer é aceitar. Não se agradece de má fé a um deus, sobretudo quando é Apolo – e diante do umbigo do mundo.
(Umbigo, percebam, rogo: símbolo de identidade, de vínculo, de essência).
Ao entrar e ao sair do tempo, aquela frase rebarbativa e quase impossível de efetivar: conhece-te a ti mesmo.
Calculo ser demasiado para a conta de um pobre mortal.
E a conta de todo mortal é dever ser alguma coisa estando destinado a morrer...
E é dessa constatação, surgida em uma de minhas conversas com Marise, que compreendi que, depois da impossível missão de conhecer-se a si mesmo é que surge esse problema moral maior que é a questão que, eventualmente, o cidadão que descobriu quem verdadeiramente éem Delphi, poderá se por, acaso seja inconveniente a sua descoberta: E depois? E depois de se saber quem se é, é moralmente imposto ser coerente com quem se é? Est-ce un devoir que d'être soi-même?
Poderia recorrer ao Cármida, de Platão; a Heráclito de Éfeso e até ao Aristóteles de Περὶ φιλοσοφίας ou a Porfírio de Tyro, com seu Tratado sobre o Conhecer-se a si mesmo. Poderia, igualmente, refletir com Diógenes Laércio, que aforma de Thales foi quem pixou a famosa frase nos muros de Delphi ou seguir as investigações de Antisthenes a respeito do Kílon. Poderia, cansao, retornar a Platão e reler o Filebo, ruminando o diálogo entre Sócrates e Protarco e, daí, pular para o Primeiro Alcebíades,com suaspungentes provocações. E, afinal, nada disso solucionaria o dilema posto, porque o mundo helênico não se atém aoproblema do problema – apenas aoproblema.
A questão é que a Marise sempre me faz pensar no problema do problema.
No problema que surge de todo problema.
E o problema é que ser quem se é nos é apresentado, em nossa cultura, em nossa grande cultura ocidental, como um imperativo. Quando não o é. E isso se dá porque a hiprocrisia não é primeiro dos grandes vícios na mesma medida em que a sincerida não é a primeira das grandes virtudes.
O que observo é que nem todos, na infame vida social que partilhamos, conseguem ser quem são e que o ato de não ser não incorre em dever moral com o mundo. A consciência de si não constitui, aprioristicamente, uma identificação entre sujeito e o objeto do sujeito, mesmo que esse objeto seja o objeto de ser sujeito.
E, pensando nisso, me divirto imaginando a Marise em visita ao oráculo de Delphi. Esgotada da caminhada sinuosa pelas Fócidas, adentra no templo e coloca à Pítia a sua questão. A Pítia se contorce – como sempre – e emite ganidos palatais e, em seguida, constructos lábio-guturais. E depois arregala os olhos, contorce-se mais ainda, bota a mão sobre o fogo, sacode-se e passa, à Marise, a mensagem que Apolo há de ter para ela.
“Sim, minha filha”, lhe diz Marise, “e daí?, e depois?”
A pitonisa cala-se.
Marise sai do templo indignada. Ignora o umbigo do mundo. Lê a inscrição sagrada no muro com descrença e toma o caminho de volta para casa.
“Eu hein!”, reflete.
“Pensei que isso daqui fosse sério!”
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