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Kamala Harris, com todas as habituais contradições que perfazem o jogo político

Fonte: Joey Weatherford USA TODAY Network

Observando o tratamento dado pela mídia à indicação de Kamala Harris como candidata a vice-presidente dos EUA, na chapa democrata liderada por Joe Biden, deu para perceber uma grande diferença editorial, apesar da quase unanimidade das opiniões compreendendo que, do ponto de vista eleitoral, foi uma boa escolha.

Não obstante, foi bastante diverso o tratamento editorial dado a essa notícia, mundo afora. As diferenças foram marcantes, entre os diversos veículos e certamente traduzem posições políticas de diferentes Estados em relação à política norte-americana na gestão Donald Trump. A mídia massiva canadense, que geralmente odeia Trump, elogiou enormemente a escolha de Harris. O The Globe and Mail, principal jornal do país em língua inglesa, editado em Ottawa mas que circula de costa a costa, chegou a dizer coisas como “Joe Biden para co-presidente” e que Harris, com seus 55 anos, é o futuro da América – diante de um Biden que, com 77 anos, provavelmente não se apresentaria para um segundo mandato.

Por sua vez, a mídia massiva francesa, do Le Figaro ao L'Humanité, lançou vários questionamentos sobre Kamala Harris, notadamente a respeito das contradições entre seu marketing pessoal progressista e a realidade das suas escolhas. A mesma temática frequentou o jornal italiano Corriere della Sera.

Nos Estados Unidos, todo espectro do jornalismo político norte-americano recuperou seu desempenho no debate de 26 de junho de 2019, quando Harris criticou a posição de Joe Biden sobre o 'busing', uma política dos anos 1970, ainda em vigor, por meio da qual o governo custeia o transporte escolar possibilitando que crianças de bairros diferentes sejam educadas na mesma escola, promovendo a integração social e racial.

Partindo das diferenças programáticas entre o pré-candidato Binden e a pré-candidata Harris, a mídia massiva norte-americana tendeu a considerar Harris como uma escolha “ponte”, sugerindo que ela produziria o diálogo entre o moderadíssimo Biden e a esquerda dos democratas. Quer dizer, com a esquerda democrata em diferentes níveis de entusiasmo, pois, se de um lado a comunidade negra do partido fez imenso lobby pela indicação de uma mulher negra para a vaga, outros próceres dessa esquerda, como Bernie Sanders e Elizabeth Warren, ofereceram apoio menos persistente.

Esse sutil confronto entre matizes políticas estiveram presentes, geralmente, nas análises dos comentaristas políticos americanos – que também exploraram em detalhes o percurso de Harris, ainda que sem o mesmo criticismo da imprensa francesa e italiana.

Harris foi procuradora distrital em São Francisco por seis anos e, em seguida, procuradora-geral da Califórnia, antes de sua eleição para o senado, em 2016, onde atuou em comitês importantes, como o de Orçamento, Segurança Interna e Judiciário e o de Inteligência.

Sua ação como promotora distrital de São Francisco foi conservadora e, talvez, marcada pelo desejo de exposição midiática. Ampliou as taxas de condenação por crime doloso e lutou contra a decisão da Suprema Corte de reduzir a população carcerária da Califórnia em 40 mil detentos com o argumento (bastante cínico, por sinal) de que sem os presos o estado perderia uma importante (barata) fonte de trabalho no combate aos incêndios florestais (cada detento ganhava US$ 2 por dia nessa ação).

Sua gestão como procuradora-geral foi considerada conservadora e antidemocrática. Por exemplo, quando fez aprovar uma lei que decretava prisão e multa de US$ 2 mil para os pais de crianças que faltavam às aulas.

Também há relatos de muitas perseguições políticas e de grande hostilidade em relação à população pobre do estado, apesar de seus esforços para criar uma persona pública progressista.

Um bom termômetro é sua posição em relação às propostas de Bernie Sanders – o democrata socialista mais à esquerda no espectro político convencional norte-americano. Por exemplo, ao repudiar a proposta de Sanders de encerrar o seguro saúde privado em favor de um sistema financiado pelo governo federal.

Outro indicativo ruim, negativo, é sua adesão à proposta de usar "as forças do mercado para acelerar a transição de combustíveis fósseis para energia mais limpa", que, na prática, sequer desacelera a exploração energética suja.

Por fim, cabe citar seu apoio a um salário mínimo federal de US$ 15 / hora, que representa um aumento tão insignificante que deixa os trabalhadores inelegíveis para programas de assistência pública, como vale-refeição, subsídio de moradia e Medicaid.

Para mim, resta mais evidente essa percepção, que ecoa, na verdade, tudo o que já li, soube, sei, a respeito da falsa dicotomia entre os partidos Democrata e Conservador e que me permite ter a seguinte compreensão a respeito de Kamala Harris: em síntese, Harris é uma populista midiática, que diz uma coisa mas faz e pensa outra. Restamos na demagogia, apesar da reivindicada posição de mulher negra e filha da imigração e apesar da efetiva significação política que significa sua indicação na composição da chapa presidencial democrata, com todas as habituais contradições que perfazem o jogo político.

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