Faleceu em Lisboa, hoje, aos 97 anos, o ensaísta Eduardo Lourenço.
Lourenço formou-se pela Universidade de Coimbra e publicou o primeiro livro, Heterodoxias, em 1949. Estudou em seguida na Universidade de Bordeaux e atuou nas universidades de Hamburgo, Heidelberg e Montpellier. Em 1960 radicou-se na França, sendo professor da Universidade de Nice até 1988. Aposentado, atuou como adido cultural da embaixada portuguesa em Roma e, posteriormente, a partir de 2013, estabeleceu-se em Lisboa.
É autor de um dos livros mais importantes da língua portuguesa, O Labirinto da saudade, de 1978, mas deixou uma obra imensa, composta por, dentre muitos outros, Fernando Pessoa Revisitado (1973), Tempo e Poesia (1974), Poesia e metafísica (1983), As Saias de Elvira (2006) e Do Colonialismo como nosso impensado (2014). Recebeu diversos prêmios, inclusive o D. Dinis, em 1995, o Camões, em 1996 e o Fernando Pessoa, em 2011.
Eduardo Lourenço vinha com certa frequência a Belém, visitar sua irmã, religiosa num convento carmelita em Benevides. Numa dessas vezes o acompanhei até lá, levando-o no meu carro. Conversamos bastante sobre a literatura portuguesa e africana contemporânea, sobre os conceitos de saudade e sebastianismo, sobre sua visão a respeito da Europa e do papel da língua portuguesa no mundo.
Ah, e também sobre Heidegger, claro, influência imensa no pensamento de Eduardo Lourenço, que me contou de quando assistiu uma palestra do filósofo em Montpelier e de como as palavras de Heidegger, naquela palestra, foram importantes para que ele construísse sua compreensão do que é a poesia.
Sabendo de sua partida, peguei aqui minha cópia de Tempo e poesia, um livro cheio de respostas originais para questões heideggerianas. Deparo com um um fragmento enigmático a respeito da ilusão que todos temos sobre tempo, sobre a temporalidade da existência, e especificamente sobre uma das formas mais curiosas dessa ilusão, a ideia de "instante":
“O paradoxo do Instante não é o de acabar quando surge. Esse dever o impomos nós ao 'banal instante', talhado na peça imaginariamente substancial do Tempo. O paradoxo do Instante é o de nunca ter principiado e não poder ter fim. Ninguém verá a cabeça nem a cauda de tal monstro” (LOURENÇO, 2003: 33).
Dirigindo a caminho de Benevides, recordo - talvez lembrando daquele poema de Fernando Pessoa em que ele dirige a caminho de Cintra, "cada vez mais perto de Cintra, cada vez longe de mim", acho que é isso, estou citando de memória, o amigo Sílvio Holanda que me ajude - perguntei a Eduardo Lourenço se ele considerava que um percurso de carro na estrada, considerando que sempre estamos nos aproximando mais do ponto de destino, não materializa, não objetiva, uma dada expectativa temporal.
A resposta que Lourenço deu à minha vaga interrogação foi muito importante: "Meu caro, toda ideia de tempo, toda temporalidade, é apenas um placebo para a ansiedade que temos diante da nossa finitude".
Com Eduardo
Lourenço entendi melhor Heidegger. E Fernando Pessoa.
Um grande mestre, que influencia imensamente o debate intelectual atual em Portugal e na Comunidade Europeia.
O Labirinto da saudade é um livro seminal, uma "psicanálise da cultura", como ele dizia. Nesse livro, Lourenço reflete sobre os "quatro traumas" que fizeram e fazem os portugueses, sendo um deles a violência atroz do processo colonial. Creio que o impacto desse ensaio ainda está por ser descoberto pela sociologia e pela historiografia brasileiras (embora já o tenha sido há muito tempo pela teoria literária).
Sei que O Labirinto da saudade foi transformado em filme, há uns dois anos, mas ainda não o vi.
Conselheiro do Estado português e maior pensador vivo de Portugal, morreu num instante de coincidência: o mesmo dia em que o país comemora da data da Restauração.
Grato a Eduardo Lourenço pela imensa e valiosa obra.
Comentários