Não devo ter muito direito de dizer o que segue, porque minha compreensão do problema não é, senão, transcendental ao fato, considerando a elementaridade de que homens podem ter o poder, mas, jamais, terão legitimidade para dar sua opinião sobre o assunto.
Não obstante, como sou um ser opiniático e reflexivo, não me recuso a não dizer o que penso.
Falo a respeito do aborto, motivado pela legalização do mesmo na Argentina. Penso que se trata de um evento maior, desses de imensa magnitude e que faz questionar as referências hegemônicas.
Sendo muito sintético e objetivo, vou direto ao ponto: a legalização do aborto, na Argentina, é uma vitória cultural e política. É uma vitória das mulheres sobre os abusos históricos incondescendentes que a política e a cultura fazem do corpo feminino.
Dizendo de oura maneira: a legalização do aborto é uma vitória do corpo feminino sobre a política e sobre a cultura.
Uma vitória do corpo feminino.
Uma vitória que se faz possível quando o corpo se faz político – ou seja, tem compreensão histórica dos processos de sujeição a que se vê submetido.
Minha opinião, a respeito desse assunto, se constrói no mundo da vida. Nunca passei pela experiência do aborto de uma companheira, mas essa experiência se fez presente em minha vida, produzindo minha compreensão, aqui colocada.
E, no mundo da vida, refiro quatro cenas consoantes:
1) acompanhei a infelicidade de um amigo querido e muito próximo – e, igualmente, de sua companheira – ao se virem obrigados a casar, excessivamente novos, pela pressão de suas famílias, em função de uma gravidez que não permitiram ser interrompida. Dessa lição, todos saíram devastados: o casal, o filho, as famílias. Todxs, ainda hoje, dissimulam seus traumas, e o fazem, por incrível que pareça, por meio da revalidação dos argumentos que justificaram os fatos produtores dos traumas, ainda justificando as escolhas realizadas.
2) aceitei um envolvimento, num passado antigo e extemporâneo, pautada pelo pânico de uma eventual gravidez e permiti que esse pânico devastasse minha sensibilidade, meus afetos e minha própria dignidade. Acredito ter sido solidário com as dificuldades e receios de minha parceira mas também creio que essas dificuldades devastaram a possibilidade de uma relação sincera – situação a que ninguém, jamais, deveria precisar se submeter.
3) acompanhei uma amiga muito próxima na realização de um aborto. A clandestinidade, nesse caso, felizmente não feriu a necessária qualidade do processo – embora isso tenha se devido, exclusivamente, à quantidade de dinheiro nele introduzida. Percebo com imensa clareza que, acaso não tivesse sido assim, a cena inteira teria sido destrutiva: a saúde de mãe e filho, no caso de não haver dinheiro; as relações humanas, sobre o contexto imediato.
4) auxiliei, certa vez, uma aluna que havia feito um aborto – clandestino, barato, sórdido. Ela o fizera em conhecida clínica da Almirante Barroso e em seguida tomara o ônibus de volta para sua casa. Desmaiara no percurso. Foi acordada e retirada do ônibus. Uma pessoa mais generosa levou-a para sua casa, de onde a aluna me telefonou. E eu era apenas um professor distante, sem nenhuma proximidade mais significativa com a moça, muito novo e recém entrado na função docente. E, incrivelmente, a pessoa mais próxima a quem ela podia recorrer... Felizmente, tive o desprendimento para apoiá-la, buscá-la e levá-la a casa de uma tia – que, interessantemente, me tratou com imensa reserva...
Essas quatro cenas, dialéticas entre si, são apenas um pedaço de tudo o que me envolve, na condição masculina, em relação ao tema do aborto. Poderia referir mais 20 ou 30 cenas similares, porque tenho mais umas 20 ou 30 vivências de cenas similares de amigas, amigos, conhecidas e conhecidos sobre o assunto, mas não vou em frente, porque não precisa. Todos sabemos o quanto a vulnerabilidade política do corpo feminino molda, transtorna, intimida a nossa cultura.
Bom, desculpem tratar de assunto tão delicado e de interferir em tema que, como disse, não sinto que tenha legitimidade para tratar, mas tem coisas que não dá para ficar de fora, sobretudo quando é o caso de dar apoio a quem tem o direito de decidir.
E esse direito é das mulheres, efetivamente. Negar o direito ao aborto não é uma prerrogativa masculina em nenhuma hipótese e se não for para apoiar o direito das mulheres, todos os homens deveriam se calar a esse respeito.
E é por isso que digo que a legalização do aborto, na Argentina, é uma vitória cultural e política. É uma vitória das mulheres sobre os abusos históricos incondescendentes que a política e a cultura fazem do corpo feminino.
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