SOBRE OS 150 ANOS DA LEI DO VENTRE LIVRE – Essa hipocrisia que legitimou muitas formas obscuras de poder
Hoje, 28 de setembro de 2021, completam-se 150 anos da proclamação da Lei do Ventre Livre, um dos marcos intersubjetivos mais importantes, pelas consequências havidas, e, ao mesmo tempo, mais hipócritas, da história do Brasil.
Homenagens a esse marco jurídico, considerando sua hipocrisia e malefícios, não merecem ser feitas – embora, chocado, tenha-as visto por todo o lado, na mídia, nas falas oficiais, nas escolas.
Como se sabe, a referida Lei declarava livres a todos os nascituros de mulheres em condição de escravidão. Menos dito é que estabelecia que, mesmo livres, essas pessoas ficassem sob a tutela dos senhores proprietários da sua mãe até os 21 anos de idade.
Ou seja, sob a aparência liberal de libertar o indivíduo, legitimava sua “indireta” escravidão até a maioridade, beneficiando o escravocrata.
É esse marco jurídico que cria a figura da “cria de casa”, do afilhado, da aia, dos meninos e meninas que recebiam abrigo e alimentação, geralmente precários, em troca de trabalho análogo à escravidão – senão mesmo escravo.
Mais que uma lei, é um marco intersubjetivo das relações de classe no Brasil, ponto nodal que sempre justificou, mesmo depois do fim da escravidão e mesmo até os dias de hoje, a apropriação do trabalho e da liberdade de crianças e jovens pelo trabalho doméstico.
A Lei do Ventre Livre foi, simplesmente um recurso protelatório – desses que, até hoje, constituem a base jurídica da vida social brasileira. Em nada ela modificou a correlação de poder e a jurisprudência sobre a apropriação da força de trabalho no país. Do escravo ao trabalhador atual, tudo são recursos simplesmente protelatórios, que adiam as reformas.
Do ponto de vista político, a Lei do Ventre Livre nada foi além de uma composição do Imperador com a facção mais tolerante dos parlamentares conservadores. Em nada ela modificou a correlação de forças e mesmo os setores mais progressistas da vida política do Império não foram capazes de compreender o caráter verdadeiro dessa lei. Em geral, acreditou-se que ela concatenava, mesmo que a médio prazo, a definitiva abolição.
Caio Prado Junior compreende, perfeitamente, esse processo, quando diz que “um raciocínio simplista, embora lógico à primeira vista, fazia concluir que decretada a liberdade dos nascituros, a escravidão estava praticamente extinta. Tratava-se apenas de uma questão de tempo”.
E o completa, dizendo que estava-se diante de mais um episódio “da eterna ilusão (quando não má-fé) dos reformistas de todos os tempos”.
A Lei do Ventre Livre é um marco da hipocrisia e do absurdo da política nacional.
Ela constitui um paroxismo pleno e, em o sendo, um exemplo de como se faz a política no Brasil.
Os 150 anos referidos não são de comemoração, mas de cinismo, subterfúgio, hipocrisia e canalhice.
Fábio Fonseca de Castro
Professor da UFPA
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