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Palacete Faciola: lembranças e (bom) contradições...

1. 

Feliz com a recuperação/restauração do palacete Faciola. Parabéns ao governo do Estado por isso. Ainda não fui lá, mas vi as fotos e escutei o que os amigos disseram. Tudo muito positivo. 

Dona Inah deve estar feliz, lá do outro lado. 

Lembro dela, pessoa avançadíssima. De um lado protegendo o prédio, um verdadeiro museu privado, como uma guardiã incansável. De outro, fazendo da sua própria casa o que alguns veriam como o oposto ao palacete: a casa « moderna » por excelência. 

Dona Inah Faciola era vizinha e amiga de minha avó. Ambas moravam na Generalíssimo, esquina com a Antônio Barreto, uma de cada lado da rua. 

No começo, minha avó tinha resistência a se entrosar com a vizinha, tal como muita gente no tempo deles. É que dona Inah era « separada » e, pior, « recasada » no Uruguai. Desses escâdalos que, na verdade, não escandalizavam ninguém mas que acabavam sendo um empecilho no trânsito com pessoas, digamos, mais sensíveis. 

Mas quase imediatamente essa resistência se quebrou. Minha avó foi ficando curiosa com dona Inah, que era muito, muito moderna. Aliás, muito mais do que moderna. E foi aos poucos se aproximando dela. E descobriu que, além de tudo, a Inah também era uma simpatia. E mais: uma gentileza, uma elegância, uma inteligência… Fascinante dona Inah Faciola… Uma vez ela nos recebeu no « palacete », com bolo, suco, café. Minha avó queria que eu conhecesse aquele museu privado. Dona Inah foi contando as histórias da casa e dos objetos… 

Não conheci, infelizmente, a « casa moderna », mas guardo relatos. Meu avô Oscar era muito amigo tanto do primeiro como do segundo esposo de dona Inah Faciola. O primeiro deles era o Armando Chermont, não o reputado dentista, mas o seu tio. O segundo, era Narciso Braga, um português que fez fortuna com a loja Âncora, especializada em eletrodomésticos e que, mais tarde, tornou-se um dos dois sócios da famosa Importadora de Ferragens. O outro sócio, para constar, foi o Antonio Velho, pai de Léa Velho e sogro de Hermógenes Condurú. 

Aliás, foi Narciso Braga e Antônio Velho, quem deram a dica ao meu avô para comprar a velha casa do outro lado da rua, esquina Generalíssimo com Antônio Barreto, pô-la abaixo e construir a sua, como queria. O mesmo que ele fez, mas ao seu gosto, "moderna, americana". 

Ou melhor, ao gosto da esposa. 

"A Inah quer uma casa moderna, Oscar, uma casa americana, vê se eu posso com isso!" 

Meu avô ensimesmou. O que era uma "casa moderna, americana"? Bom, a princípio, era uma casa quase de rodinhas: o bar tinha rodinhas, algumas cadeiras, o fogão, a mesma de centro, a cama… (bom, depois tiraram as rodinhas da cama, porque elas se revelaram impráticas e até mesmo constrangedoras). 

Certo, certo, isso é pitoresco, mas o fato é que a coisa era séria, porque a « casa moderna » tinha móveis de um design estiloso, inesperado, avançado e belo. E também tinha funcionalidades e eletrodomésticos que não eram vistos em outros lugares da cidade, tudo mandado biuscar na "América"! Foram vizinhos muitos e muitos anos, até que um dia meus avós resolveram se mudar, algumas quadras mais à frente, para o largo de Nazaré. Para um apartamento no prédio que se inaugurava em 1965, made by Judah Levy, sócio de meu avô: o Rainha Esther. 

E aí minha avó queria um "apartamento moderno, americano". Pediu ajuda e foi dona Inah quem decorou – não sem aperreios… Mas daqui a pouco voltaremos a este assunto. 

2.

Falemos, antes, do palacete Faciola, e dos próprios, essa gente geralmente sensível, amigas das artes, da música e dos livros. 

A família tem origem italiana, como o nome indica. Inicia com Giovanni Faciolo, nascido em Francavilla-Bisio, próximo de Gênova, na Itália. Faciolo imigrou para o Brasil por volta de 1870, estabelecendo-se como comerciante, primeiramente, em São Luis do Maranhão, onde se casou com Michaella Jansen Ramos de Almeida, filha de Antônio Ramos de Almeida, proprietário da Livraria Universal, nessa cidade. Seus negócios não deram muito certo do Maranhão e ele tentou a sorte no Porto, em Portugal. Por fim, resolveu retornar à América, estabelecendo-se, por volta de 1880, em Belém, cidade de economia mais dinâmica. 

Em Belém passou a ser conhecido como João Faciola, e se tornou um grande comerciante. Criou em Belém seus nove filhos, que foram: Victor José d'Almeida Faciola, nascido no Porto, a 28-07-1875 e falecido ainda criança, gêmeo de Maria da Glória d'Almeida Faciola, falecida em Belém a 25-03-1931; José d'Almeida Faciola, também nascido no Porto a 23-09-1877; Antônio d'Almeida Faciola, nascido em São Luis a 08-07-1878; João d'Almeida Faciola, nascido no Porto, em 1879; o segundo Victor d’Almeida Faciola, nascido em Belém, em 1881; Maria Josephina d'Almeida Faciola, nascida em Francavilla, Itália, a 03-10-1883 e falecida em Belém, a 25-05-1931; Maria Anna d'Almeida Faciola, nascida em Francavilla, a 30-06-1885) e Maria Laura d'Almeida Faciola, também nascida de Francavilla, a 12-04-1892. 

José, o mais velho, foi um grande empresário de Belém. Além de sócio da Cervejaria Paraense, teve o cargo público de grande prestígio, no seu tempo, de provedor da Santa Casa de Misericórdia do Pará. Amante da literatura e dos livros, foi proprietário de uma das grandes livrarias de Belém, a Maranhense, localizada na velha rua João Alfredo. Contava-se que tinha comprado todas as bibliotecas de São Luis para revendê-las em Belém, coisa de 30 mil livros, vindos todos num barco fretado que teve sua entrada na baía do Guajará comemorada por foguetes... 

Antônio, o segundo filho, foi o Faciola mais famoso. Era músico de formação, tendo estudado no prestigioso Conservatório de Milão. Retornou ao Pará mas, em vez de seguir a carreira musical, acabou assumindo a maioria dos negócios do pai. Foi um comerciante importante e, tal como o irmão José, foi sócio da Cervejaria Paraense. Foi também banqueiro, um dos sócios majoritários do Banco do Pará. E fez carreira política, sendo eleito deputado e senador estadual, além de prefeito de Belém. Casou-se com sua prima, Servita de Almeida, nascida em São Luís e falecida em Belém, em 24-09-1930. 

Há muitas histórias a seu respeito, notadamente as que falam da sua sensibilidade pelas artes. Foi um grande colecionador de peças decorativas, formando um acervo que se tornou conhecido em todo o Brasil e que foi vendido em 1982, depois da morte de dona Inah, sua filha, guardiã dessas peças. Foi de sua iniciativa a aquisição, quando prefeito de Belém, do relógio que orna a Praça do Relógio, em frente ao Ver-o-Peso, que teria pago com recursos próprios, sem onerar os cofres municipais. E há toda uma lenda sobre um certo rolls-royce, de sua propriedade, o rolls-royce (e único) primeiro de Belém. 

Victor Faciola, o filho homem caçula, foi uma das pessoas mais intrigantes da Belém da era da borracha. Tenho umas duzentas histórias dele para contar, mas não vou contar aqui, porque o Facebook me baniria. Ficam para as histórias secretas de Belém, que um dia escrevo. Só antecipo que tinha um talento especial para as apostas: as corridas de cavalo e as corridas de bicicleta, ambas importantes na diversão de Belém da era da borracha. Sua rixa, nas corridas, com meus parentes Vasco da Gama e Abreu e Pedro Horácio e Silva, ficaram famosas. 

Das mulheres da família, as filhas de João Faciola também foram conhecidas pelos talentos musicais, literários e pela afamada sensibilidade. Maria da Glória, pianista, foi casada com Gonçalo Cotrin e teve duas filhas, Leonor e Neide. Maria Josephina não se casou, faleceu solteira, em Belém, aos 48 anos, reputada professora de música. Maria Anna, a terceira filha, casou-se com ....de Souza (não sei seu pré-nome) e teve quatro filhos, que foram Maria Irene, Gelcira, Orlandina e Jorge Faciola de Souza. Por fim, a filha caçula, a bela Maria Laura, pintora de talento e cantora, casou-se, primeiramente, com o juiz de direito Joaquim Augusto de Andrade Freitas, filho do famoso Dr. Freitas que nomeia rua e escola e que, viúva, desposou Edgar da Gama e Silva Chermont. 

Na geração seguinte o nome mais destacado foi o filho mais velho de Antônio d’Almeida Faciola, o dr. Oscar d'Almeida Faciola, nascido em Belém a 03-10-1899 e que foi advogado, diretor e principal acionista do Banco do Pará. Seu casamento com Consuelo Cardoso, filha de um fazendeiro do Marajó, foi um acontecimento registrado na revista Belém Nova e nos jornais da época. Foi ele que herdou o “palacete” ora recuperado. Outros filhos de Antônio foram Edgar Faciola, nascido em 1906 e falecido em Belém em 1968, casado com Cléa Rodrigues dos Santos e a dona Inah, antes referida. 

3. 

E, assim, voltemos à dona Inah. 

Mas só para deixar uma imagem dela. O novo apartamento de minha avó, no espaçoso Rainha Esther, largo de Nazaré, ficou lindo. A cozinha era moderníssima, cheia de aparelhos – cabendo, no entanto, revelar que foi o primeiro uso do seu “espremedor de laranjas”, em voltagem incorreta, que provocou aquele curto-circuito que apagou até as luzes da basílica, em outubro de 1965. 

E havia um “gabinete”, com móveis de madeira moderníssimos, tipo Brasília, e uma estante meio pontiaguda, cada prateleira apontando para um fuso horário do mundo. Camas, armários, sofás, vasos e banheiras, tudo extra-moderno, tudo bossa-nova, tudo JK. 

Só uma coisa minha avó Vera não admitiu: rodinhas. 

“Maria Vera, fiz por tua casa o que não consegui fazer pela minha, porque o Narcizo não entenderia tudo...” 

Por suposto, minha avó entendia, mas meu avô, talvez reticente com tanta modernidade, comentou com o Narcizo Braga, 

“Meu irmão” (assim o tratava), “até entendo. O conceito de banheiro como sala de estar é agradável e com o resto eu me acostumo; só reclamo mesmo é daquela poltrona, a que tem um buraco no lugar da bunda!” 

Cresci nesse apartamento moderno, largo de Nazaré, edifício Rainha Esther, casa de meus avós Oscar e Maria Vera, decorado sob conselhos de Inah Faciola e sob protestos de Narcizo Braga. 

Eu, menino curioso, até nem me importava, mas não entendi mais nada na vida quando minha avó me levou para conhecer o “palacete” de dona Inah, o palacete Faciola, que ela amava e protegia como um cão, mas onde nada, nada, nada vezes nada, era moderno... 

Minha avó e dona Inah faleceram, ambas, em 1982.  A coleção de Antônio Faciola foi dispersada e as "coisas modernas" de suas casas, igualmente. As casas e o apartamento "modernos" foram transformados. Não sobrou nada. O palacete Faciola, no entanto, felizmente, foi recuperado. 

Acho que vou lá amanhã.

Algumas imagens: 

Dona Inah, numa reportagem da revista Claudia, no palacete Faciola. 


O pai de dona Inah, Antônio d’Almeida Faciola, pianista, poeta, colecionador de arte; futuro prefeito de Belém, num “corso” de carnaval, anos 1910. 

A casa “moderna e americana” de dona Inah, canto da Generalíssimo com a Antônio Barreto. 


A cozinha da “casa moderna”, cheia de novidade. 

O banheiro da “casa moderna”, uma sala de estar... 


O toucador da “casa moderna”, luzes por todos os lados... 


O leito da “casa moderna” de dona Inah, já sem rodinhas...


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