Datas são apenas datas, algumas vezes erradas, outras vezes equivocadas. Quase sempre destinadas ao esquecimento. Amanhã, simbolicamente, completam-se cem anos da crise de borracha. Seguem algumas notas.
Vou contar a história de um
beijo de cem anos atrás. Era em Belém que ele acontecia e embora fosse bem
agosto, aquele tempo, o céu estava carregado com cúmulos cinzentos, como os que
envolviam a cidade nos meses chuvosos. Era Belém e chovia. Sebastião tinha
vinte e seis anos e Edmée tinha dezessete em 1912. Os dois estavam na varanda
da casa dela e se despediam, e havia no ar da cidade, carregado de mistérios,
uma estranha ambivalência de saudades prematuras. Sebastião aproximou seu rosto
enquanto Edmée conseguia pensar somente em flores, como me foi contado, e a
beijou. Era a primeira vez que se beijavam em dois anos de noivado.
Despediram-se em seguida.
Em menos de duas horas, Sebastião embarcava num vapor da companhia
"Pará & Amazonas" que estava ancorado no cais inglês - um dos que
restaram da imensa frota do visconde de Santo Elias. Partiu para o Rio de
Janeiro um pouco afobado - os acontecimentos na cidade provocavam muitas
partidas naqueles dias. Era bem agosto, tudo aquilo, ainda que um céu cinzento,
de desejo incasto, envolvesse a cidade e fosse desenhando, como num sonho, uma
contingência de chuvas gigantescas e sucessivas, no mês de maior calor. Edmée
não tornou a ver Sebastião. Ele partiu da cidade para tentar solver a falência
da empresa do seu pai e, não conseguindo, jamais retornou. Escreveu algumas
cartas e certa vez enviou um presente de natal, mas acabou por desaparecer
completamente. Aquele primeiro e único beijo entre os dois, no entanto, não foi
esquecido, e foi-me contado por algumas amigas de Edmée do tempo em que eram
senhoritas. E o que seguem, neste livro, são memórias e sonhos, simplesmente
porque não sei se um beijo é só um beijo, cem anos depois.
Ou, talvez, pudesse dizer assim: cem anos depois, uma "Era da
Borracha" vai ser apenas uma "Era da Borracha"... ou não? Será,
que hoje, cem anos depois daqueles dias, Belém se livrou dos seus mitos de
apogeu, glória, loucura e vigorosa queda? Ou, será que não... Proponho ver que sobre
Belém existe outra Belém - imaginária. E que esta Belém imaginária (que precisa
ser conhecida) surge daquela outra (dentre outras mais) de cem anos atrás.
O que seguem, são anotações para que sejam inscritos túmulos no ar.
Adentro da cidade havia cidades transeuntes e adentro dos fantasmas
havia várias histórias perpassadas. A concretude da história, as várias versões
sobre os fatos, a velha fé nos anjos-custódios, alguns odores misturados e,
enfim, todas as outras coisas que faziam a cidade, estavam em permanente
suspensão e, para todas aquelas pessoas, era como se o passado transitasse por
instantes.
Tinha para mim que eram todos uns sonhadores sensuais. Os temas que
desenvolviam, seus mitos, aquelas falas que se repetiam sempre, todos os dias,
amparadas pela própria tristeza, eram falas sobre a cidade e ao mesmo tempo
sobre o vazio. O passado então não existira? Como o Marco Polo de Ítalo Calvino
explicava para Kublai Khan (ou imaginava explicar, ou Kublai imaginava a
explicação) os passados mudam de acordo com o itinerário do viajante. Os
sonhadores viajam para reviver seu passado ou para reencontrar seu futuro?,
pergunta Khan, e Marco Polo responde: "O
viajante reconhece o pouco que é seu descobrindo o muito que não teve e o que
não terá"[1].
Dalcídio Jurandir se perguntava:
« De Belém, aquela, quem me dá
notícias?»[2]. E a cada pergunta desse gênero formulada em Belém um coro de respostas
murmurava - no vento, segundo o poeta Ruy Barata - um calendário de respostas[3]. Um calendário de destinos. E também na minha casa, e em todos os lugares
a que se ia, percebia-se a estranha ambivalência dos sonhos sobre a história.
As palavras estavam, sempre, carregadas de mistério.
Ao escutar mais atentamente aquela interminável seqüência de falas,
ou de murmúrios, sobre a pequena grandiosidade deixada no passado, e ao
perceber que todas aquelas falas compunham um discurso coletivo do qual eu
próprio (e minha pesquisa) não éramos ausentes, percebia como todos eles eram
uns sonhadores sensuais. As memórias envolviam. A cidade desmedusava-se. As
falas literárias, as falas musicais, as falas plásticas e as falas orais não
registradas, mas poderosas, socialmente instaladoras, repetiam sempre a mesma
história inconclusa. Mas eram memórias carnívoras aquelas memórias.
Justo duvidar de minhas próprias condições de pesquisa, não sabendo
se as memórias que tenho são realmente minhas. No entanto, dentro desse
processo discursivo de implicitação e denominação, há certo espaço oco, que é
um jogo do ser dentro do tempo. Uma "temporalidade",
dotada dessa presença extemporânea que constitui toda figuração social e de
desejo, desejo de ser, de projetar-se, de figurar-se, de identificar-se :
desejo de ter identidade.
Uma figuração social é uma composição costumeira de uma idéia: a forma
com que uma sociedade ou um grupo social particular expressa uma idéia, seja
ela mais clara ou obscura. Dizendo-se de outra maneira, uma figuração social é
uma espécie de tipificação do tecido cultural intersubjetivo. De acordo com
Alfred Schütz, as idéias sociais formam-se por sedimentação de idéias
pré-existentes. A partir da vivência social comum, as idéias tipificam-se –
configuram-se – de uma determinada maneira, estabelecendo-se como sentidos que
fazem parte da vida cotidiana. Mais ou menos presentes na vida social, conforme
o uso que delas se faça numa época ou num espaço social determinado, essas
tipificações adquirem certo tom de verdade indubitável. Muitas vezes imiscuídas
na vida cotidiana, mal são percebidas, embora sejam empregadas a todo momento.
Um
fenômeno de sedimentação de idéias conforma, na verdade, uma miríade de
negociações de sentido que só podem ser compreendidas na vivência da vida
cotidiana: na coerência que elas têm nas diversas operações do contato humano.
Assim, os sentidos se formam, anulam ou transformam por meio de processos
diversificados: fundem-se para formar novos sentidos, decompõem-se em sentidos
diferentes e mesmo contraditórios, multiplicam-se em sentidos novos, etc.
Procurarei
construir a tese de que essa figuração social corresponde a uma sensação do moderno própria às cidades
que, localizadas à periferia do capitalismo do século XIX, tiveram, nesse
século XIX, um papel peculiar no sistema das trocas econômicas, ideológicas ou
políticas. Foi o caso da cidade de Belém, que, não obstante estar situada à
periferia do plano geopolítico brasileiro, acabou por ter – o que se pode
explicar pela incipiência da estrutura geopolítica brasileira no que se refere
à sua capacidade de, nesse momento histórico, estabelecer uma centralização
eficaz de perspectivas políticas deveras já constituídas – um papel
relativamente importante no sistema-mundo que então se construía.
Essa
peculiar situação histórica se deveu ao fato de concentrar-se em Belém, entre
1860 e 1920, a base logística de operação de comércio do látex amazônico, um
componente básico da transformação industrial que se operou, na segunda metade
do século XIX, nos Estados Unidos e na Europa ocidental. Com efeito, a partir a
invenção de um método de aperfeiçoamento do processo de vulcanização do látex,
feita por Charles Goodyear em 1839, o látex tornou-se um componente essencial
de toda sorte de maquinária industrial. Até 1880 a Amazônia foi o único
fornecedor mundial. A partir dessa data surgiram as produções africanas (África
ocidental), bem como, na Amazônia, dois outros portos exportadores, a cidade
brasileira de Manaus e a cidade peruana de Iquitos. Em 1912 despontou a
produção da Malásia. Ordenada sob o sistema de plantation (enquanto o látex
amazônico era recolhido num sistema de coleta em seu meio natural), essa
produção acabou por nocautear e levar à extinção da exportação amazônica.
Não
obstante, nos anos em que manteve-se como centro do mercado mundial do látex, a
cidade de Belém constituiu-se uma importante experiência de modernidade. Uma
experiência alegórica, desejamos demonstrar, na medida em que vivências e
visibilidades do moderno, constituídas no centro do capitalismo mundial, foram
trazidas para a capital amazônica como temporalizações e configurações de uma
alteridade que, em Belém, era experimentada indiretamente : como uma
experiência de linguagem – como o que aqui chamamos de alegoria.
Procurei
construir e demonstrar essa tese no correr deste trabalho. Minha estratégia
para fazê-lo baseou-se na seguinte seqüência de operações : 1) empreendimento
de uma leitura heurística das diversas falas sociais presentes na
intersubjetividade da cidade de Belém a respeito do ciclo do látex; 2)
identificação de um padrão narrativo ideal-típico que seja correntemente empregado
para narrar o ciclo do látex; 3) observação de como as imagens-alegorias de uma
modernidade européia refiguram-se, alegoricamente, nessa “periferia do
capitalismo”; 4) construção de uma hipótese que associe a experiência histórica
vivenciada pela cidade de Belém e a conformação/transmissão/preservação dessa
figuração social. Este texto constitui o resultado dessa investigação.
Um vácuo qualquer de tempo, ou um vácuo de memória, nos joga na
Belém do final do século XIX. É o tempo onde vive o Sujeito Observador, mas sua
memória aborda outras épocas. A realidade concreta se mistura, em sua mente, a
uma realidade onírica, composta por fragmentos de informações e emoções, coisas
que lhe restam como uma sedimentação de experiências anteriores, algumas das
quais nem mesmo suas são. Um homem é um ser-em-si junto com a sua
circunstância. Percebamos que essa circunstância é também o ser-por-outros da
história. O ser histórico, como ser social, se faz num discurso circunstante,
circundande, ambivalente, dimensionado pelo lento e pelo repartido, pela
consciência de ser-para-si, pela impressão lesada de ser-com-outros e pela
consciência impossível de seu ser-em-si.
O Sujeito Observador enxerga a cidade. Porém, narrador sensual,
converte a cidade que vê num labirinto, um "mis-en-abîme", e não há
tempo ou espaço que deixe de ser convertido dessa maneira: a visão desse
observador pressupõe a superposição das narrações da cidade, ou seja, a cidade
enquanto uma narrativa barroca. O que vê? O barroco dos curvilíneos das
mangueiras de Belém, o barroco das alturas históricas superpostas, o barroco em
que a cidade se converte, quando sonha, num armário de gavetas imbricadas, uma
dentro da outra, como caixas infinitas de lembranças e descobertas, criam uma
cidade na qual a pungência cotidiana do "ter-perdido-algo" leva à
melancolia, expressão do seu ser-para-sí. Na Belém do final do século XIX
milhões de brilhos "vidrilhos” se misturam sendo. São-em-si. Porém, o que
significa serem? Quem descreve essa realidade? No Sujeito que olha ela é
para-si. A cidade se abre em gavetas e se perde num céu que está ao quarto
andar, ou seja, ao fim das mangueiras e prédios velhos, e se Belém pensa e
representa o passado, o faz porque tem consciência de um tipo de morte que mata
as cidades.
Observo o Sujeito Observador. Ele olha intranqüilamente. Sugiro que
ele descreva primeiro a Belém do "passado" (entenda-se, "Era da
Borracha", pois boa parte do passado da cidade é convertido, impunemente,
em "Era da Borracha", o que é fácil e aliviante). Em seguida, sugiro
que ele descreva a Belém ideal para viver. A síntese dos dois depoimentos me
leva a Sancha.
Sim, pois Belém seria uma cidade chamada Sancha, sra. d. Sancha,
coberta de ouro e prata, como imaginou o maestro Waldemar Henrique[4]. Ela teria ruas compridas e confusas, e calçadas com pedras de liós em
toda sua extensão. Seria uma cidade respirando entre o abafado do mormaço e o
vento de um temporal. Teria sobrados misteriosos e palacetes com estilos
misturados, e bondes e ônibus "zeppelin", e teria algumas torres
construídas em casas imponentes. Suas ruas estariam cobertas por mangueiras e
outras árvores, num emaranhado silencioso e noturno, ou melhor: soturno,
próprio das belezas femininas densas, e não distante daqueles imensos cabelos
pintados nas damas de Albery. Haveria homens com chapéus
"cronstadts", e mulheres vestidas com rendas, panos lisos, cintas, ou
apenas chitas, mas sobre todas pairaria um odor simulado, na verdade o odor das
flores de sapotilhas.
Se essa Belém claramente onírica continuasse a ser descrita, ela
cada vez mais recenderia a flor de sapotilhas, ou a outras frutas poderosas, e
seria uma cidade enorme e com idéias estrangeiras, e a cor cinza predominaria
no centro e o colorido em derredor. E haveria música misteriosa, que de longe
pareceria cítara, mas de perto era claramente pianolas que haveria, e meio
alegre mezzo partida, e cartas viriam de Lisboa, mensagens das ruas de Lisboa,
e essas cartas planeariam sobre a cidade e suas salas. Haveria navios mercantes
chegados de Hamburgo, Massachussets, Oporto e Liverpool, estranhos objetos
cirúrgicos, e aparelhos de vários ferros de construir. Muitos fantasmas seriam
ressuscitados, e eles sussurrariam. E tudo isso seria trazido pelo vento (o
vento azul de uma manhã casta, de Ruy Barata), sempre furioso, mordendo a todos
os telhados e a cabeça de todos os homens.
A existência desses signos pressupõe a antecedência de ser, ou
melhor, o ser-para-si, a elaboração sócio-cultural, de vários elementos
materiais, que os sujeitos observadores dos vários tempos sucessivos da
história extravasaram com o seu desejo imaterial de representação. Vários
sujeitos em tempos sucessivos... O acumulo discursivo da história torna os
últimos Sujeitos seres delirantes... Os signos que estes últimos Sujeitos
produzem, através de uma mecânica de pulsão de morte e desejo, traçam uma
poética lúdica em forma de devaneio.
Não estarei falando, neste texto, ao menos de forma direta, sobre o
"ciclo do látex". Falo sobre a "Era da Borracha", que é a
sua produção discursiva, que é o ciclo do látex preenchido com valores míticos.
E o que é a "Era da Borracha"? Em sua temporalidade discursiva, é um
devaneio sobre o passado.
A "Era da Borracha", sempre é bom lembrar, não existia em
seu período histórico. Havia, sim, a certeza da economia próspera e a produção
sígnica-discursiva de então. Essa é a primeira evidência da ilusão discursiva
que permeia o termo "Era da Borracha". Aquele tempo somente se torna
"Era da Borracha" quando precisamos, em nossos tempos de sujeitos
sucessivos, definir e proteger nossos sonhos e nossas melancolias de fausto,
apogeu e queda. Nesse sentido, creio, posso dizer que "Era da
Borracha" é um lugar de produções sígnicas, que incorpora o passado de uma
forma imaginativa.
Os elementos discursivos atuais, digamos dos anos 40 a este fim de
século em que estamos, sobre a "Era da Borracha" se baseiam nos
seguintes signos, ou melhor, códigos de afluição de signos:
- Idéia de um passado de fausto,
- Idéia de um passado "modernamente" civilizado,
- Idéia de uma urbanidade delirante e cosmopolita,
- Idéia de destruição ágil e impiedosa dos signos anteriores.
Essas idéias produzem o devaneio sobre o ciclo, saudades do que
poderia ter sido mesmo sem ter acontecido. Certamente que podemos investigar o
ciclo econômico do látex à luz da história (de uma história das produções) e
definir com mais exatidão se cada etapa dessa história é coerente a um todo
histórico, processual, que lhe é superior. Certamente que podemos indagar sobre
o que é materialmente plausível em relação às fantasmagorias produzidas pelos
habitantes de Belém durante o ciclo do látex e, a partir dessa pesquisa,
demandar respostas à grande ilusão existente sobre o ciclo. Porém, lembro que
estamos trabalhando com as figurações sociais, com a forma social, com o mundo
imaginal – com a intersubjetividade, enfim. Nessa perspectiva a realidade é um
produto dialético da concretude material e do delírio fantasmático, ou ilusão,
sobre a antecedência de ser dessa mesma concretude.
Torna-se lícito, dessa forma, buscar no devaneio certo grau de
verdade, ou mesmo a tese de que constitui-se, o devaneio, como uma antítese
produtiva da realidade. Formulação que permite caracterizar e interpretar a
categoria das "saudades do desconhecido".
Todo o lugar de fala "Era da Borracha" é uma saudade do
desconhecido. É uma lembrança sensual, efetivada quando a concretude material
de um objeto histórico-discursivo permeia o poder de gerenciar novas falas,
novos enunciados. O tema da ligação entre memória e imaginário está presente em
boa parte das filosofias do conhecimento. A verdade material do discurso,
dentro de uma perspectiva fenomenológica da discursibilidade dos atores
sociais, é a união da materialidade histórica dos fatos com os sonhos dos
produtores do discurso.
Ao tomar conhecimento daquelas falas encantadas, e sebastianas, que
se sucediam incessantemente em Belém, passei a cogitar certas hipóteses sobre a
existencialidade das coisas que "eram" discursivamente. Todo o lugar
de fala "Era da Borracha" constituiria uma "saudade do
desconhecido"? As cidades melancólicas, assim, teriam saudades ocas, como
se verá. Saudades ocas, roucas e barrocas. Saudades ideais e não
contingenciais.
Excerto de A Cidade Sebastiana. Era da Borracha, Memória e Melancolia numa Capital da Periferia da Modernidade. Belém, 2010.
[1] Calvino, Ítalo. As Cidades invisíveis. São Paulo,
Companhia das Letras, 1992.
[4]
Waldemar Henrique
da Costa Pereira, Senhora Dona Sancha, musicalização sobre cantiga de
brincar do cancioneiro popular.
Comentários
A Belém dsa borracha é cheia de contradições e contrastes, mas o imaginário projetado (re)constrói nas filiganas da memória a cidade ideal, para nos salvar.
Os emblemas tem sua razão de ser como explicativos da realidade e lembro da ansiedde de KUblai Khan em ompreende-los, traduzi-los, dominá=los e a resposta de Marco Polo sobre esta impossibilidade, posto que ele já seria também um emblema.
E toda esta viagem pelo beijo de cem anos. Olha seu poder.